Como a trajetória de Dora e Josué demonstra um cenário nacional pautado ao mesmo tempo na formação e no resquício da memória
Por Lucas Cavalcanti*
Em “Central do Brasil” acompanhamos Dora (Fernanda Montenegro) e Josué (Vinícius de Oliveira) em um trajeto do Sudeste até o Nordeste brasileiro, que serviria para reconciliar o valor da memória, assim como o dos laços familiares, em um Brasil sem afetividade.
No início do longa, dirigido por Walter Salles, observamos vislumbres de identidade que formam a cidadania, o que fica ainda mais em evidência ao acompanhamos Dora, uma professora aposentada, que usa de seu tempo para escrever cartas para analfabetos.
Com Dora, vemos um fluxo frenético de diferentes pessoas, cada uma carregando consigo as mais diversas vivências e memórias. Eventualmente, ela se encontra na tutela de Josué, um garoto que perde a mãe em um acidente e passa a morar na estação.
A direção de Salles nos influencia, por meio da técnica, a olhar o mundo construído no filme como um lugar desconectado dos aspectos afetivos, o que pode ser visto em cenas onde o diretor escolhe enquadrar a visibilidade da imagem em fragmentos dentro dela mesma (como no buraco de uma lixeira ou a janela de um vagão).
Também podemos notar o constante fluxo de identidades, que recebe suporte de elementos simbólicos que predominam em grande parte da linguagem, como a fé e a religião, e servem na composição fílmica como uma costura do povo independentemente do local visitado.
Nas quase duas horas de projeção, carregada de simbolismos que podem representar a memória afetiva de seus realizadores em relação aos cenários e representantes do povo brasileiro, podemos enxergar certo cuidado para que o filme não se torne uma constante e gratuita ode ao passado. Os elementos estão ali para desenvolver a história e para adicionar a visibilidade fílmica e caracterizá-la.
Dora, no início do filme, expele um caráter ríspido, que unido à espontaneidade ingênua de Josué, cria constantes conflitos numa relação criada ao acaso e contra a vontade de ambos. Em certo ponto, o universo particular de ambos é tomado como foco da obra para que se desenvolva e amadureça uma consciência afetiva (e principalmente familiar).
Nota-se que Dora projeta no pai de Josué (do qual os dois estão à procura boa parte da história) a imagem de seu próprio pai, com quem tinha uma relação mal resolvida e que causava rancor. Seu contato com figuras masculinas, desde então, é abalado, e suas relações com o universo masculino se tornaram rasas.
Josué, ao perder a mãe, se encontrava numa posição de abandono, assim como Dora foi abandonada cedo pelo pai. Mesmo que a transição não tenha sido num virar de chaves, Dora desenvolve uma relação com Josué de forma natural, mesmo que tenham se encontrado em situações decisivas que criaram alguns pontapés. O acordar de Dora nos braços de Josué após desmaiar na romaria fotografada de forma frenética é um deles (e talvez o mais forte).
No último ato, portanto, existe um jogo de decisões com certezas e incertezas, que escorrem o drama existencial das possibilidades, o que acontece justamente pelo tamanho do laço que presenciamos. Dora já se encontra mais determinada ao afeto. As cartas que antes escrevia, e se julgava na posição de escolher quais eram dignas (e com critérios pessoais ardilosos) de serem enviadas de fato, agora foram substituídas pelas pilhas de cartas que envia pelo correio. Ao fincar suas garras decididas em começar uma vida nova com Josué, eles encontram a família do garoto.
A casa estava apenas sob os cuidados dos dois filhos (pois ironicamente o pai havia deixado a casa tinha meses à procura de sua esposa, mãe de Josué), e Dora escolhe partir e deixar o garoto com eles. Ela compreende o valor familiar ao ponto de, ao escrever sua carta de despedida, escolher ilustrar, pela primeira vez, uma memória nostálgica com seu pai de forma positiva, já que isso a lembrou paralelamente a um evento que passou com Josué.
Com tamanho fluxo de imagens, pessoas, identidades, valores e tudo que a subjetividade social pode trazer, é natural que no desenrolar da vida possamos nos esquecer (ou até querer nos forçar a isso, como diz Dora em relação à fotografia, em uma fala rancorosa sobre não esquecer de seu pai). E ainda que com mais abertura emocional, ela não deixa de expor o seu maior medo, e que talvez seja o palco para todo o drama vivido em “Central do Brasil”: o medo de sermos esquecidos.
*Sobre o autor: Nascido e crescido em São Paulo, foi estudar cinema no interior do Paraná (UNILA) através das convenções dramáticas da vida. Desde sempre interessado em arte, ainda se fascina com a potencialidade dela em ilustrar as mais diversas vivências e singularidades no âmbito visual.