Como Sam Raimi usou a sensibilidade para tecer a teia moral da juventude no amadurecimento de Peter Parker.
Por Lucas Cavalcanti*
Em sua trilogia, Sam Raimi fincou com todas as suas forças no potencial do personagem que tinha em suas mãos ao falar de questões como crescimento, maturidade, e principalmente, poder e responsabilidade. Com uma sensibilidade ímpar, sua tarefa logo no primeiro filme era simples: contar a trajetória de um jovem que era um zé ninguém e de repente se encontra no domínio de poderes incríveis, mas que com uma tragédia pessoal, se vê encarregado de assumir que seus grandes poderes trazem grandes responsabilidades, e que por isso ele deveria, acima de tudo, colocar o seu entorno acima de si mesmo, sacrificando até seus prazeres e ambições.
Adaptando de maneira exemplar a linguagem das histórias em quadrinhos, tanto esteticamente quanto narrativamente, ele escolhe por contar a história de maneira que cria uma aura fabular, onde a sensibilidade se encontra com um otimismo ingênuo, mesmo nos momentos mais amargos e frios. Ao mesmo tempo em que os planos engenhosos dramatizam muito do necessário para ampliar a emoção nos mais variados tipos de sequências, sejam as românticas, as tensas (que trazem muito da marca de horror do diretor de maneira sutil), as dramáticas e as heróicas, trabalhando crucialmente com as recorrentes cores contrastantes e saturadas, saltando os figurinos em movimento.
Se tratando de uma fábula sobre amadurecimento, existem cuidados para não tornar a estilização estética em caricatura. O fato de ser um personagem que vive uma fase de transição, descobrindo capacidades corpóreas novas, gera constantes metáforas em relação à puberdade masculina. Como maior exemplo: o fato das teias agora serem fabricadas pelo próprio corpo de Peter, ao invés de cientificamente como nos quadrinhos, uma perfeita alusão à produção masculina de sêmen. A excelência da direção, mais uma vez, usa da sutileza para fazer disso pitadas de bom humor, mas para elevar a história a outro ponto. A escolha de Maguire para o papel também enfatiza todos esses elementos, dado que ele consegue empregar uma vulnerabilidade que torna todo o seu drama palpável.
Além dos socos e chutes essenciais por se tratar de um ‘’filme de boneco’’ (e que são sofisticadamente fotografados), Sam Raimi evidencia a todo o custo que o combate real vai além do físico, ele é moral. Seu Homem-Aranha é moldado pelas relações humanas, são elas que o definem. Seja com sua tia, seja com seu interesse amoroso, seja com seu melhor amigo, ou até mesmo com quem ele descobre ser seu grande inimigo. É um conflito evidenciado pelo contraste em como seu vilão coloca o ego para comandar o poder, diferentemente do herói, que traz até a última possível consequência como seu grande fundamento da responsabilidade, o levando até de abrir mão de ficar com quem tanto gostaria.
Isso nos leva diretamente ao conflito central do segundo filme. Anteriormente, subíamos junto com Peter Parker a escada narrativa da trajetória e descoberta de quem seria o mito do Homem-Aranha. Em 2004, Sam Raimi nos mostra o caminho inverso: somos empurrados da escada e precisamos levantar e aprender a andar de novo. A história aqui é conduzida de modo que é o Homem-Aranha quem vem a descobrir quem está sendo Peter Parker, e ainda se fazendo questionar: será que existe possibilidade de os dois coexistirem?
A sensibilidade presente no primeiro filme que traçava a natureza do herói pelas suas relações sociais aqui é elevada em um nível dramático que nos insere na intimidade de Peter, colocando todas essas questões como o foco narrativo. Ele deve mesmo ser o Homem-Aranha? A convicção da ‘’responsabilidade’’ a todo custo começa a perder forças quando o próprio se vê na situação da perda do domínio de seus poderes, consequência do fardo que o obrigava a ceder sua vida para o mito que vivia no mesmo corpo (uma sutilmente brilhante metáfora para depressão e ansiedade, onde a falta de teia pode representar até uma impotência sexual). Mito esse que, por mais que seja rodeado de suspiros de fãs com seus atos heróicos, não compensa a frustração de não poder conciliar sua vida amorosa com quem tanto queria.
O romantismo é uma peça chave de Spider-Man 2 em que Sam Raimi estiliza sua Nova Iorque com cores novamente vibrantes e saturadas, mas aqui aplicando-as em conceitos mais melancólicos do que otimistas em comparação com o primeiro filme. Os cenários são enquadrados de uma forma muito mais grandiosa por aqui, até mesmo os que levam o espectador a terem uma visão intimista e reservada, como o novo apartamento de Peter e sua antiga casa, mas é justamente essa amplitude emocional estampada por eles que contrasta com a sua escala real naquele universo.
É nas sutilezas como a frase de Peter Parker sobre ‘’o conhecimento ser usado para o bem da humanidade’’ que o filme mostra o quão poderoso é ter um universo visionado pelas relações humanas, trazendo credibilidade ao que é construído, e onde o vínculo emocional se firma além do espetáculo, dando ênfase a ele. A estética e o espetáculo são importantes, mas não seriam nada sem as estruturas emocionais designadas. Sam Raimi também engloba o sentimentalismo e a emoção de forma grandiosa, fazendo com que todo o filme por si só se costure e tenha uma harmonia tonal.
Em 2007, chegava a hora de observarmos uma desconstrução. Embora careça de certo polimento em algumas superfícies, não falha em se certificar de alcançar o que seus antecessores haviam adotado tematizar com maestria: o coração de seus personagens.
Pela primeira vez, quase tudo parece em ordem para Peter Parker. Ele conseguiu estabilizar a presença de Mary Jane em sua vida civil. Na heroica, vive um período de intensa adoração e reconhecimento popular, apesar de que sua relação com seu melhor amigo ainda permanece incerta após Harry acreditar plenamente em que ele é o responsável pela morte de seu pai.
Enquanto Spider-Man 2 tomava caminhos narrativos um tanto quanto intimistas, aqui a direção é contrária, apelando para um exibicionismo constante, o que poderia cair em armadilhas por correr o risco de transparecer artificialidade dramática de uma maneira prejudicial. Porém a direção de Sam Raimi faz milagres ao conseguir conciliar essa estética ao que é tratado tematicamente.
Apesar da obra tentar incluir a presença de três ameaças físicas, o maior embate de Peter é certamente o moral, vendo que a presença física do simbionte que toma conta de seu corpo é muito mais metafórica, se relacionando com questões de ego e orgulho. A desconstrução do que torna Peter um herói é extremamente corajosa, principalmente por tomar a decisão de colocar o personagem em atitudes duvidosas.
Dado o momento em que seu relacionamento com Mary Jane é enfraquecido pelo próprio não ter empatia o suficiente para se colocar na posição frágil dela sem se utilizar de exemplo moral, quando seu orgulho é ferido, o novo uniforme preto é um artifício do qual ele utiliza para suprir a fragilidade, ampliar e potencializar seu ego narcisista.
O “dark Peter” rende uma estilização constante, desenvolvendo tanto humor, quanto ação e drama. Ele funciona como uma desconstrução de convenções viris de atitude, que o ridiculariza no humor e não romantiza ou maquia para quando a direção opta por caminhos mais dramaticamente cruciais narrativamente (o que é bem comum em abordagens masculinas de heróis de ação). Fato é que poucos filmes, não só do núcleo de super-herói, têm a coragem de exibir seu protagonista sendo inconsequente ao ponto de bater em sua mulher em um surto ou de falar desagradáveis verdades a um amigo enfraquecido.
A ação é um dos maiores pontos onde o exibicionismo é estilizado de maneira a prevalecer o artificial. A última batalha nesse terceiro capítulo contrasta com a do local dos dois anteriores, que se preservaram em locais reservados e intimistas. Aqui, uma multidão assiste o evento. Crianças torcem para o herói como se estivessem brincando. O próprio cenário remete a um playset, e a inclusão de mais figuras presentes no embate do que só um herói e vilão como anteriormente, transborda um espetáculo que periga a um comercial de brinquedos.
Infelizmente essa inconsistência na abordagem dramática destoa de certa maneira do que se havia estabelecido nos dois anteriores, mas acima de tudo, o núcleo, o coração deles havia sido mais do que respeitado: havia sido expandido. Sam Raimi mais uma vez explora as noções de poder e responsabilidade, colocando dessa vez Peter para repensar e enfrentar ele mesmo, onde o combate final envolve um final trágico do que seria a sua versão distorcida dominada pelo narcisismo caso ele fosse um indivíduo sem uma figura guia como seu tio, um pedido de perdão para quem a princípio era considerado por ele como a raiz da ruína de sua vida, e a morte de um amigo que se sacrificou escolhendo ser a melhor versão de quem poderia ser.
Por fim, a tradicional balançada final pela cidade esbanjando otimismo e heroísmo aqui é trocada por uma singela dança, que sintetiza exatamente o núcleo emocional de Spider-Man 3: não importa o que aconteça, sempre temos uma escolha, e devemos fazer o possível para preservar nossas relações. Até mesmo para um “super’’, são elas que nos fortalecem e nos dão chão. Acima de tudo, são elas que nos mantêm vivos o suficiente para continuar.
Apesar de ser uma trilogia fechada com mais de dez anos e o personagem já tendo recebido dois reboots, a singularidade e excelência com as quais a direção optou por abordar tamanhos dilemas existenciais, tornam esses filmes especiais para o público (tanto o que viu na época, como os novos que chegam) conseguir sentir de maneira muito palpável o que existe de mais dramático na juventude, se conectando com um personagem que transborda sentimentalismo e renega muitas das idealizações comuns em personagens “super’’. Ele não nasceu para ser especial, é mais um rosto na multidão, é um de nós. O que faz dele especial, é que ele encontra ao longo do seu caminho do amadurecimento motivos para se sentir certo. E essa é uma fantasia da qual todos nós podemos vestir.
*Sobre o autor: Nascido e crescido em São Paulo, foi estudar cinema no interior do Paraná (UNILA) através das convenções dramáticas da vida. Desde sempre interessado em arte, ainda se fascina com a potencialidade dela em ilustrar as mais diversas vivências e singularidades no âmbito visual.