O Jazz de Shadows (1958)

Shadows apropria-se do improviso no jazz como ímpeto propulsor

Pedro Vidal

O improviso é inerente ao cinema desde o seu nascimento. A falta de recursos e conhecimento para a criação de um dispositivo capaz de registrar imagens serve de impulso para a sua invenção. Com o desenvolvimento da linguagem, a limitação técnica adquire um caráter resolutivo: filmar sem ter como filmar. Assim, ao lado de  Rossellini e Godard, Cassavetes foi um dos cineastas que compreendeu que, para filmar com algo, é preciso filmar com nada. Shadows nos EUA – junto de À Bout de Souffle na França – anunciava um dos momentos dessa concepção cinematográfica. 

O primeiro filme de John Cassavetes é um marco no cinema independente. Shadows inova a forma ao se utilizar de um roteiro esboçado em exercícios de atuação, com fotografia e o som instáveis e ruidosos, além da montagem, que é completamente imprevisível. Em termos de conteúdo, Shadows discutia relacionamentos interraciais e a degradação moral americana em plenos anos 50. 

Muitas das temáticas debatidas por Cassavetes se dão graças ao meio contracultural nova-iorquino em que o diretor estava inserido. Em meio à poesia beatnik e a digressão existencialista nova-iorquina, Cassavetes se juntava a cineastas como Stan Brakhage, Jack Smith, Kenneth Anger, Jonas Mekas e Shirley Clarke, que reivindicavam por um cinema como direito de qualquer artista com uma câmera. Assim, o diretor escolheu desafiar Hollywood, pagando as contas como ator para poder reunir recursos para filmar seus próprios filmes, não muito diferente de Orson Welles. 

Cassavetes captura a atmosfera vazia e cinzenta de Nova York, filmando a decadência do estilo de vida americano através da complexidade tonal e rítmica que apenas o improviso pode proporcionar. Tendo este como força motriz, Shadows faz da inexperiência com a linguagem técnica intencional. 

Assim como no cinema, o processo criativo musical é pautado em condicionar o aspecto técnico e o estrutural para dar nascimento a algo novo. Seguindo essa lógica, Shadows apropria-se do improviso no jazz como ímpeto propulsor. Enquanto Miles Davis compunha Ascenseur pour l’Échafaud e Art Blakey compunha Les Liaisons Dangereuses, Cassavetes escolheu Charles Mingus para redigir o improviso em Shadows. Por mais que a versão final do filme não conte com a maioria das composições de Mingus, o jazz passava a fazer parte de sua composição fílmica.

A abordagem caótica de Mingus, já presente em obras anteriores como The Clown, traduz em Shadows o seu espírito oblíquo e desconcertante, compondo uma narrativa puramente jazzística. Com seus personagens, Cassavetes filma corpos balançantes ao cifrado de Mingus, figuras marginalizadas sem nenhuma perspectiva de vida. No final, o que resta é o personagem de Ben Carruthers: de óculos escuros, perdido entre os letreiros de neon das ruas de Nova York, como um James Dean de fim de carreira. 

No processo de composição da trilha sonora, pairava a dúvida do grau de controle e organização que os improvisos de Mingus deveriam tomar. Apesar de Shadows ser um filme permeado pelo acaso, Cassavetes tinha a clareza necessária para fazer com que o filme e a música de Mingus tivessem seu próprio processo de distinção e movimento. Shadows equilibra sua forma e conteúdo, buscando por um processo contínuo de estilo sem exceder as barreiras do mistério do improviso. 

O recado dado ao final do filme não é à toa, Cassavetes coloca o público em confronto: todo o sentimento dentro de Shadows foi fruto de um improviso. Sua  dramaturgia levantava forças pra continuar e isso não era percebido, porque a princípio o público não tinha ciência disso. Cassavetes faz seus atores dançarem e sofrerem na nossa frente sem termos o conhecimento da sua intenção. 

Porém, o que é importante é entender que o que foi sentido foi genuíno, Shadows não tem a pretensão de ser orquestral, mas tem o seu caos devidamente organizado para que haja a verdade e a beleza do filme — e a surpresa do recado final. Afinal, o princípio organizante também faz parte do improviso, Mingus jamais soaria um acorde sem a técnica, assim como Cassavetes não teria conduzido seus atores em Shadows sem um conhecimento minimamente prévio como ator. Aqui, a técnica serve de acessório, e essa é a magia do improviso. Por isso, apenas Mingus poderia ter feito a trilha sonora do filme. 

Dialeticamente, a graça de Shadows reside na sua liberdade, na sua obra aberta que nos conduz intuitivamente às sombras do cotidiano, do amor, do sofrimento e do acaso, como uma nota de jazz. O improviso direciona um aspecto “inacabado” do filme, as identidades dos personagens são irresolutas, esboços ontológicos que provocam a sua multiplicidade. Identidade como um processo temporal, provisório e para sempre inacabado. Como o título sugere, os personagens de Shadows são “sombras” de si mesmos até que seu processo existencial em aberto se concretize.

Nas palavras de Jim Jarmusch, o cinema de Cassavetes começa e termina falando sobre amor, levando quem assiste a um lugar muito mais profundo que qualquer estudo que discuta a forma ou o conteúdo. No primeiríssimo momento, Cassavetes compreendeu que a beleza, a confusão e a complexidade das relações humanas são distintas da natureza do celulóide. 

Referências

https://www.loc.gov/static/programs/national-film-preservation-board/documents/shadows.pdf
https://www.nickschager.com/nsfp/2004/03/shadows_1959_b.html
https://www.criterion.com/current/posts/339-shadows-eternal-times-square
https://journals.equinoxpub.com/index.php/OLDJFM/article/view/8158

http://www.contracampo.com.br/01-10/shadows.html 

https://www.corpusfluxus.org/Pages/works_events/lectureMingus.html

http://www.revistacinetica.com.br/shadowsmekas.htm 

https://people.bu.edu/rcarney/discoveries/shadowsquest.shtml http://stopsmilingonline.com/story_detail.php?id=994