Como o segundo filme da trilogia de Araki se tornou um retrato do zeitgeist da década de 1990
Por Felipe Parlato*
Quando The Doom Generation foi exibido no Festival de Sundance, em janeiro de 1995, a recepção dos que assistiram o longa não foi favorável, e há relatos que sugerem a saída de múltiplos espectadores da sala de cinema.
A atmosfera caótica, violenta, suja e desesperançosa das personagens Amy Blue (Rose McGowan), Jordan White (James Duval) e Xavier Red (Johnathan Schaech) deixou em muitos críticos a impressão de superficial e vazia. Para parte dos que permaneceram na sessão naquele dia, e para as gerações que viriam a descobrir o filme nos anos subsequentes, o roadmovie se mostrou um dos mais poderosos retratos da realidade vivida por parte da juventude da época, realidade essa que se estende de muitas formas até os dias de hoje.
Na segunda etapa da Teenage Apocalypse Trilogy, do diretor norte-americano Gregg Araki, o trio de protagonistas viaja sem rumo, após matar, acidentalmente, um vendedor em uma loja de conveniência, constantemente se envolvendo em sexo e violência.
Em contraste com a incessante tensão sexual entre as personagens de Duval e Schaech, Araki abre sua afronta à marginalização da comunidade LGBTQIA+ na era da AIDS com a frase “A Heterossexual movie by Gregg Araki”. O subtítulo pega de surpresa aqueles que vinham acompanhando a carreira do diretor, que, desde o fim da década de 1980, trazia a identidade queer como parte central de suas obras.
Contudo, ao longo do filme, fica clara a ironia planejada pelo diretor, e a reflexão sobre a heteronormatividade na qual o triângulo está constantemente compelido a se encaixar.
James M. Moran, em um artigo de 1996, para a revista Film Quarterly, afirma que esta é uma das características centrais da obra de Araki, que, menos interessado em apresentar à juventude LGBTQIA+ uma espécie de modelo a ser seguido, busca pelo choque, enquanto critica a falta de apoio governamental que a comunidade recebia na época.
Na história em quadrinhos O Amor Não Dura Para Sempre, publicada na hoje extinta revista Epic Illustrated, o escritor britânico Alan Moore, em um cenário futurista, imagina a AIDS como um vírus alienígena. Servindo também como uma resposta melancólica às políticas conservadoras da Era Reagan (1974–2008), Moore, em sua obra, nos dá a liberdade de imaginar um mundo em que a doença não foi atrelada à homossexualidade.
No universo de Araki, as personagens “frequentemente afirmam que o sexo é superestimado, enquanto, em sua cultura de consumo supersaturada de imagens mediadas de sexo, são igualmente obcecados por ele” (MORAN, 1996, p. 4), sendo vítimas de uma violência provocada pelo ódio à sua própria sexualidade e existência. Isso é exemplificado nos 10 minutos finais, censurados, onde o trio é atacado e é dito a Jordan e Xavier que o mundo seria “um lugar mais puro” sem eles.
De maneira semelhante, milhares de adolescentes durante a crise da AIDS tiveram que criar a responsabilidade de cuidar de si mesmos em meio à falta de políticas públicas de assistência a vítimas e conscientização sobre a doença. A “culpa”, farsa criada para sustentar a falta de ações governamentais, foi jogada à camada da população que já era marginalizada. Se ao menos fosse um vírus vindo do espaço…
Apesar do cenário desesperançoso em que Amy, Jordan — inspirados nas tirinhas do casal de mesmo nome, criado pelo cartunista Mark Beyer — e Xavier vivem, o próprio diretor rejeita o rótulo de niilista constantemente atribuído a sua trilogia. Em uma entrevista à Senses of Cinema em 2006, Araki afirma:
“Ele anseia por uma conexão pura com outra pessoa, e acho que é isso que torna os filmes meio românticos, mesmo que eles neguem o ‘felizes para sempre’. O fato é que ele está procurando por isso e acredita nisso em primeiro lugar. O ponto de vista cínico ou niilista, eu penso, seria ele não acreditar mais nisso, ele virar as costas para isso, ou dizer que não existe.”
A fala se refere especificamente a Dark Smith, personagem de Nowhere (1997), mas segundo o realizador, essa ideia se estende para os três filmes da trilogia.
Mesmo com as críticas, The Doom Generation permanece um filme essencial para se entender o zeitgeist LGBTQIA+ dos anos 1990. Repleto de momentos de humor e referências musicais, uma grande fonte de inspiração para Araki, o roadmovie vai além da infame avaliação de “zero estrelas” do colunista Roger Ebert, que reproduziu na sua crítica o que leu no press kit: “‘The Doom Generation is the Alienated Teen Pic to End All Alienated Teen Pics–and, oh yeah, it’s a comedy and a love story, too.’ Oh, yeah.”
*Sobre o autor: Felipe Parlato gosta de muitas coisas, uma delas é o cinema. Estuda Jornalismo na Faculdade Cásper Líbero. Enquanto não descobre sua maior paixão, vai se dedicando um pouco a cada uma delas.
Referências:
MORAN, James M. Gregg Araki: guerrilla film-maker for a queer generation. Film Quarterly (ARCHIVE), v. 50, n. 1, p. 18, 1996.
GLASBY, Taylor. Dazed. How The Doom Generation defined disaffected youth. Documento eletrônico. Disponível em: <https://www.dazeddigital.com/artsandculture/article/27036/1/how-the-doom-generation-defined-disaffected-youth#annotations:8020921>
YOUNG, Damon; et al. Senses of Cinema. “A Vessel of Imagery”: An Interview with Gregg Araki. Documento eletrônico. Disponível em: <https://www.sensesofcinema.com/2006/feature-articles/gregg_araki/>
HART, Kylo-Patrick R. Cinematic trash or cultural treasure? Conflicting viewer reactions to the extremely violent world of bisexual men in Gregg Araki’s “heterosexual movie” The Doom Generation. Journal of Bisexuality, v. 7, n. 1–2, p. 51–69, 2007.
MOORE, Alan; et al. O Amor Não Dura Para Sempre. In: SOBEL, Marc (Org.). Histórias Brilhantes: 10 HQs de Alan Moore. São Paulo: Mythos. 2018.