O som como ferramenta narrativa e de direção em ‘2001 de Kubrick’

Em “2001: Uma Odisséia no Espaço”, o som se faz essencial tanto para a compreensão de sua narrativa, quanto para o entendimento de sua grandiosidade

Por Guilherme Giusti

Ao longo da história do cinema, o som foi frequentemente deixado de lado. Se em sua essência o cinema era constituído apenas por fotogramas em sequência, o surgimento do som o coloca como um mero adicional à imagem. Porém, no caso de “2001: Uma Odisséia no Espaço”, se faz essencial, por meio da direção, tanto para a compreensão de sua narrativa, quanto para o entendimento de sua grandiosidade.

Se o Cinema surge como um meio técnico para a reprodução de fotografias em sequência — utilizando-se de psicologismos para interpretação contínua do espectador –, já sabemos logo em seu início, que o som será pensado secundariamente, inventado apenas no fim da década de 1920. Tal fator, entretanto, nunca impediu os produtores e distribuidores de apresentarem seus filmes ao público, acompanhados de composições feitas ao vivo.

Nesse sentido, foram criadas diversas trilhas musicais para tais filmes, como é o caso de Encouraçado Potemkin (1925), Nanook: O Esquimó (1922), Limite (1931) entre muitos outros, produções que ainda hoje ganham novas composições conforme são restauradas, relançadas ou reexibidas. Em tais casos, todavia, o som ainda não era necessariamente pensado pelo diretor ou produtor do filme, tirando o grau de autorialidade que a junção entre som e foto viria a ter.

Mesmo quando o som enfim surge no cinema, se estabelece; de primeira não se trata de dar voz às imagens, mas sim de atrelar essas mesmas composições musicais à película, dando fim à necessidade de apresentações ao vivo. Os primeiros filmes sonoros não serão elogiados exatamente por seus diálogos, e segundo grandes autores como Eric Rohmer, a culpa não era dos dialoguistas.

Em seu texto Por um Cinema Falado, escrito em 1948, o representante da Nouvelle Vague aponta que o desinteresse dos diretores e produtores em relação aos diálogos teria sido a principal causa:

…frequentemente tratam os diálogos como um material desimportante, enquanto aplicam toda a sua engenhosidade à procura de ângulos de câmera ou de um ritmo sutil nas transições entre planos e contraplanos.”

Esse aspecto nos permite notar que não houve uma familiarização do público de cinema nas décadas iniciais do Cinema Sonoro, especialmente no que diz respeito à importância dos diálogos. Isto se reflete ainda nos dias de hoje, não só no público-espectador, mas igualmente na pesquisa cinematográfica, na indústria, na Academia e entre diversos cinéfilos e diretores. Assim, ao analisarmos tudo que se refere a uma das obras mais importantes para a história do Cinema, o influente “2001: Uma Odisséia no Espaço” (1968), de Stanley Kubrick, podemos notar que normalmente se prioriza o elogio da imagem técnica e dos efeitos especiais práticos.

O som e o silêncio em 2001:

Não é por acaso que muitos consideram o “2001 de Kubrick” um filme majoritariamente silencioso. Junto a A. W. Watkins e Winston Ryder — Supervisor de Som e Editor de Som da obra, respectivamente –, o cineasta entendeu perfeitamente as possibilidades do uso expressivo do som. Assim como a fotografia tem a sua penumbra, em meio à luz, o som igualmente admite os seus silêncios. E o longa utiliza isso para amplificar a tensão, o medo e a estranheza, entre diversos outros fatores e sentimentos.

As músicas utilizadas pela obras não são meramente adjacentes às imagens, mas sim tratadas conjuntamente ao que se espera transmitir através dos artifícios fotográficos. Por escolha do diretor, isso se manifesta a partir de trilhas musicais de grandes compositores clássicos, tais como Richard Strauss, Johann Strauss II, György Ligeti e Aram Khachaturian (Adagio). Essa escolha é apresentada ao espectador logo no começo do filme, quando vemos o “nascimento da terra”, concebida entre a lua e o sol, cuja força e potência é muito alavancada por trazer consigo a música de Richard Strauss, Also Sprach Zarathustra.

Esse aspecto se torna ainda mais nítido ao se reassistir a cena sem a trilha musical, experimento que permite a percepção da ausência dessa grandiosidade, refletida em um entendimento simplório de que são apenas planetas em miniatura, se movendo lentamente dentro de um estúdio. Exemplos do gênero revelam que a música aqui não só é usada para preencher os silêncios do vácuo do espaço, mas igualmente para conectar-se o som à uma sensação, à um objeto, por meio do Leitmotiv — tema sonoro recorrente que é reproduzido diferentes vezes atrelado a um personagem ou elemento específico de uma narrativa.

Toda vez que é apresentado o “Monolito” — espécie de máquina geométrica criada por seres extraterrestres inteligentes, dentro da mitologia proposta pela ficção –, por exemplo, ouve-se no fundo uma trilha musical “misteriosa” de György Ligeti. Em um primeiro momento, ela se confunde com o próprio som do vento, trazendo ao espectador a agonia do mistério causado pela ausência de conhecimento em relação ao objeto ou ser inteligente — angústia que acomete tanto aos primatas, quanto, posteriormente, aos humanos.

Não apenas a música de Ligeti é utilizada como Leitmotiv, mas também a já mencionada música inicial Also Sprach Zarathustra, de Richard Strauss, é conectada com a ideia de evolução humana. Ela aparece não só no nascimento da terra, mas posteriormente na descoberta das ferramentas por parte dos primatas, na qual, quando um primata joga o osso para cima, viaja-se, por meio de um jump-match-cut, 4 milhões de anos no futuro, para um momento onde os humanos já conquistaram a natureza e seus objetos a ponto de criar naves capazes de viajar no espaço.

Som diegético e não diegético:

Além disso, é interessante perceber também a construção e a relação entre os sons diegéticos — presentes dentro do próprio universo proposto pela tela — e não diegéticos — externos e exclusivos ao espectador. Com exceção de The Dawn of Men, que aborda um tempo distante, em um planeta Terra do passado –, nas primeiras sequências do filme, não há sons diegéticos, apenas músicas. O primeiro som diegético é emitido no espaço, na Estação Espacial Internacional. Apenas se escuta o som diegético dentro de uma nave quando o Dr. Floyd vai visitar o monolito que se encontra em Clavius, e posteriormente, na Discovery One, nave que tem como destino-de-missão Júpiter. Aqui, então, se ouve pela primeira vez a mistura de sons diegéticos e não diegéticos.

Assim, conforme o espectador e os personagens se aproximam de entender o que se passa, conforme se aproximam mais e mais dessa vida-extraterrestre-inteligente, mais substituem-se os silêncios e a música por sons diegéticos. Porém, conforme o plot com o Hal 9000 vai se desenvolvendo, voltamos a ter mais silêncios e músicas, principalmente no vácuo do espaço, quando os astronautas saem. Esses sons diegéticos, no começo do filme, em The Dawn of Men, são essenciais para a interpretação primitiva das emoções e sensações dos primatas que o filme quer nos passar; e o silêncio — representado por grilos — acaba contrastando com o caos e com a emoção dos mesmos.

Diálogos em 2001:

Não obstante, o tipo de som diegético menos comentado neste filme: o diálogo. Ainda que sejam numerosos, 2001 não se trata de um filme que depende deles do começo ao fim, sendo usados em choque constante com o silêncio e com as músicas. Nem por isso, contudo, os diálogos deixam de ser uma ferramenta essencial para Kubrick, fundamentais para a progressão da história, especialmente em sua terceira parte.

Uma vez que um computador — algo recente, na época do filme –, se encontra no controle total da nave, havendo a necessidade de recodificação de seus binários para a fala humana, os diálogos trazem ao espectador a sensação de humanização desse aparato eletrônico. Ainda que para o público dos dias de hoje isso seja um aspecto normal, naquela época tal fator provocava uma estranheza, medo, do que aquela máquina seria capaz de fazer.

Mas é apenas através do diálogo, da troca com os humanos, que o espectador é levado ao entendimento do que se passa com o computador e com todos ali presentes. E então pode-se utilizar a seguinte frase de Rohmer para enquadrar Kubrick: “A arte da direção não existe para obscurecer o que os personagens dizem, mas, pelo contrário, para permitir que não percamos nenhuma palavra.

Últimas anotações

Por fim, pode-se ainda notar o quanto o diretor e seus técnicos de som foram fiéis à física do som, uma vez que as poucas vezes em que ouvimos som, no vácuo do espaço, fora de uma nave, se trata da respiração de um astronauta, que a ouviria de dentro do próprio traje — um som diegético interno, da perspectiva do personagem.

Assim, há na direção de Kubrick uma preferência em trabalhar o som como forma de ressaltar a narrativa, por meio do diálogo, junto às emoções, por meio da música, trabalhando de forma única o contraste entre som e silêncio. 2001 é, então, um filme que não deve ser unicamente reconhecido e prestigiado por sua imagem e técnica, mas igualmente por suas escolhas de direção sonora, essenciais para alcançar a grandiosidade que o filme pretende ter.

Referências:

Por um cinema falado. Eric Rohmer. Le Temps Modernes, setembro, 1948. Tradução de Bernardo Moraes Chacur. Disponível em: <http://multiplotcinema.com.br/2021/08/por-um-cinema-falado>

*Sobre o autor: Guilherme Giusti é estudante de Cinema na FAAP, tem interesse em som, fotografia e montagem. Possui um olhar mais técnico e uma preferência pelo realismo cinematográfico — poderia ser considerado pupilo de Bazin. Além de amar a estética do subdesenvolvimento e se considerar apocalíptico.