O Terror Surrealista de A Hora do Lobo

Por Felipe Palmieri

A Hora do Lobo (1968) é um filme do cineasta Ingmar Bergman, estrelando Max Von Sydow e Liv Ullmann como Johan e Alma Borg. É o esforço cinematográfico que sucedeu o marcante e influente Quando Duas Mulheres Pecam (1966), e inicialmente havia sido planejado como um “filme duplo”, a ser projetado sempre junto deste — vide as semelhanças temáticas que ambos os filmes compartilham, esse planejamento ainda é perceptível.

Bergman é definitivamente um dos cineastas mais prestigiados de seu tempo, tendo muitas de suas obras reverenciadas como obras-primas do cinema. Principalmente no recorte temporal do fim da década de 50 ao início da década de 70, que é quando suas experimentações narrativas e visuais tornaram-se mais frequentes, consolidando-no como uma das vozes mais únicas e interessantes do período.

O cineasta sueco tem uma prolífica e extensa obra, a qual flutua entre os mais diversos gêneros, desde a comédia ao drama ao musical e, nesse caso, o terror. Há sempre um trabalho visual e tonal nos filmes que subconscientemente torna-os propriamente “bergmanianos”, reconhecíveis do início pelos traços estilísticos frequentes do diretor. É talvez por essa identificação autoral que os filmes “de gênero” de Bergman nunca se limitam aos moldes já estabelecidos.

A Hora do Lobo, no entanto, mesmo vestindo do início ao fim as características que se esperariam do filme, é um ponto fora da curva na filmografia do diretor. Independentemente do fato de não ser o primeiro ou o mais extravagante dos esforços experimentais de Bergman, A Hora do Lobo foi rejeitado — e ainda é –, encontrando uma recepção majoritariamente negativa desde seu lançamento.

Talvez a percepção do filme se dê pelo mergulho desinibido no próprio tema. A Hora do Lobo é uma imersão na psique de seu autor, em completude. Examina suas inseguranças como marido, como homem e, mais notoriamente, como artista. De seus trabalhos é o que mais se alinha com os ideais surrealistas, dentre os quais o mais gritante passa a ser exatamente essa busca por histórias e narrativas no subconsciente. É onde os indubitáveis estudos cinematográficos de Bergman entram em fruição, incorporando o cerne teórico de um movimento cinematográfico que o precedeu em seu primeiro e único exercício no gênero do terror.

Imagem do trecho mais emblemático de A Hora do Lobo

“Essa é a pior hora, sabe como se chama? Os mais velhos costumavam chamá-la de a hora do lobo. É a hora em que a maioria das pessoas morre, e a maioria das crianças nasce. É a hora em que os pesadelos vêm até nós, e se estamos acordados, temos medo” — diz o personagem de Max Von Sydow à sua esposa.

Entrando de fato na narrativa e forma do filme, A Hora do Lobo é quase uma obra metalinguística. É um filme que trabalha sempre com camadas de narração. A premissa base é que o casal que acompanhamos, um artista e sua esposa, decidem passar um tempo em uma ilha isolada e pouco povoada. Hospedando-se em uma casa de campo, iniciamos o filme com um depoimento da personagem de Liv Ullmann quebrando a quarta parede, nos contando o contexto e pretexto da relação desse casal, e lançando as bases do que está por vir. A personagem serve como quase uma narradora no filme, pois a partir da construção dramática da história Alma começa a ler trechos do diário de seu marido.

Alma se dirige diretamente à audiência

Nos momentos subsequentes vemos uma linha do tempo gradativamente mais bagunçada e desorganizada, entrelaçando o decorrer real com trechos do diário de Johan encenados. Explora-se a ideia de que um casal quando está há muito tempo junto passa a se tornar uma pessoa só, um muito semelhante ao outro. Eles passam a se encontrar com estranhas figuras, que em sua maioria apresentam-se como habitantes ricos de um castelo ali por perto. Há sempre uma palpável angústia nas interações do casal, seja entre eles ou deles com outros — sutis detalhes como o olhar e maneirismos deixam claro os sentimentos borbulhando sob a pele.

Isto se dá até o trecho em que o casal aceita um convite para jantar no castelo, e relutantemente se inserem nesse ciclo. Neste ponto o surrealismo no filme se torna verdadeiramente tangível, e questionamos se tudo ali é real ou uma ilusão do artista em decadência. Em meio a confusão que se sucede e às provocações dos nobres majoritariamente direcionadas à Alma, a tensão superficial que sempre esteve ali cede, e o casal implode em uma discussão sobre os sentimentos de Johan por outra mulher.

Só aqui, após a metade do filme, o título A Hora do Lobo finalmente aparece em tela — efetivamente dividindo-o em dois. A segunda parte do filme é pura manifestação subconsciente. As camadas de narração supracitadas se tornam absolutamente não confiáveis, pois o real é indistinguível do imaginário, e as âncoras que deveriam nos guiar pela história cederam à devaneios. O marido, crescentemente perturbado, mal consegue dormir e memórias — ou alucinações? — de violência passam a surgir, ainda exacerbadas pela presença dos misteriosos nobres do castelo que intervêm na vida do casal. No clímax da decadência, Johan atira em sua esposa, com uma arma presenteada a ele por um nobre, e foge para o castelo.

Ao chegar lá, o personagem de Von Sydow encontra-se um a um com membros da aristocracia, que dessa vez se comunicam de forma expansiva, alguns realizando atos impossíveis como os de subir nas paredes andando ou retirar os olhos do próprio rosto, enquanto outros agem de forma incoerente, se jogando em luxúria pelo homem ou maquiando-o sem razão aparente. Tudo isso culmina em uma exploração do desejo extraconjugal de Johan, ao ser flagrado nu com a personificação de sua cobiça pela mulher de um relacionamento passado, humilhando-se frente a todas as pessoas do castelo que misteriosamente aparecem ali para rir dele — como um artista exposto no palco, indefeso.

Sua esposa volta a narrar quebrando a quarta parede, numa espécie de epílogo. Descobre-se que o tiro não a matou, mas que no amálgama de personalidade que havia se tornado sua vida — a mistura entre a dela e a do marido — ela também cedeu às ilusões e aos males que estavam afetando a mente de Johan, passando a ser atormentada pelas figuras aristocráticas. Nas palavras proferidas pela própria personagem, será que se ela tivesse amado Johan menos, teria sido mais fácil protegê-lo das perturbações que o assolavam?

Obviamente a narrativa do filme trabalha com muitas coisas que podem ser destrinchadas, principalmente derivando-se do aspecto autoanalítico da obra. A projeção da imagem inconsciente de Bergman toma forma através do posicionamento dos personagens nas entrelinhas narrativas de obras como A Flauta Mágica, ópera de Mozart, e os trabalhos do escritor alemão E. T. A. Hoffmann — como foi constatado no estudo realizado pelo pesquisador Jeffrey Gantz.

Esses moldes são o fundamento da forma como o surrealismo se manifesta em A Hora do Lobo, através de pequenas inserções cotidianas que escalam em intensidade e importância. O gênero atribuído ao filme, como “o filme de terror de Bergman” deriva da pura interpretação dessas imagens surreais, que ocasionam em surtos de violência e pavor diante daquilo que não pode ser racionalizado. A personificação imagética desse conceito no filme é a “memória” recorrente que atormenta Johan, dele agredindo até a morte uma criança que tomava sol à beira do mar — sem razão aparente.

Johan observando a criança sob o sol

Anos depois do propósito cinematográfico surrealista ter se inserido na história audiovisual, o qual é descrito pelos pesquisadores Diego de Jesus e Hilda Berçan em seu trabalho sobre cinema surrealista como: “romper as fronteiras entre a realidade e o sonho”. Bergman parte disso e torna mais abrupto o fluxo simbólico de seus filmes, no fruto de seu “horror psicológico”, adaptando a busca surrealista num rompimento da fronteira entre realidade e pesadelo.

FONTES:

Buntzen, Lynda; Craig, Carla. “‘Hour of the Wolf’: The Case of Ingmar B.” Film Quarterly, vol. 30, no. 2, University of California Press, 1976, pp. 23–34, https://doi.org/10.2307/1211758.

Burns E.J.. Ingmar Bergman’s Projected Self: From W. A. Mozart’s Die Zauberflöte to Vargtimmen. 2007. https://doi.org/10.1007/978-1-4020-5182-1_27.

“Examining Bergman: The Brilliance of Hour of the Wolf (1968)”. YouTube, postado por Red Spectre Films, 16 de outubro de 2020. https://www.youtube.com/watch?v=diinX-0ic5A/https:/ /.

Gantz, Jeffrey. “Mozart Hoffmann and Ingmar Bergman’s ‘Vargtimmen.’” Literature/Film. Quarterly 8, no. 2 (1980): 104–15. http://www.jstor.org/stable/43796137.

Jesus, Diego de; Berçan, Hilda. Cinema, Surrealismo e Psicanálise. Universidade Federal do Espírito Santo, ES. 2012. Disponível em:<http://www.intercom.org.br/PAPERS/REGIONAIS/SUDESTE2012/resumos/R33-0843-1.pdf>.