Por Pedro Vidal*
“É assim mesmo que vejo o cinema. (…) um cinema voltado à realidade presente, destinado a servir à realidade sem moralismos de segunda ordem.” O artigo a seguir procura evidenciar os laços da realidade paulistana com os recursos estéticos do cinema de Person.
Em 1965, era exibido nas telas de cinema das metrópoles São Paulo, Sociedade Anônima de Luís Sérgio Person. O diretor havia acabado de retornar de seus estudos no Centro Sperimentale di Cinematografia em Roma, em 1963, com o roteiro pronto, tendo sido fortemente influenciado pelo Neorrealismo italiano — autores como Francesco Rosi e Michelangelo Antonioni. São Paulo, S. A. é um retrato das pressões modernas da sociedade sobre o ilustre e trágico Carlos, personagem engolido na falsa esperança de que a ascensão social o salvará com virtuosismo da miséria existencial.
Eu estremecia agonizando e procurava me erguer
Mas teu ventre era como areia movediça para os meus dedos.
Procurei ficar imóvel e orar, mas fui me afogando em ti mesma
Desaparecendo no teu ser disperso que se contraía como a voragem.
(…)
Quando despertei era claro e eu tinha brotado novamente
Vinha cheio do pavor das tuas entranhas.
Trecho de Agonia de Vinícius de Moraes.
Originalmente, o título provisório do filme foi Agonia, inspirado no poema de mesmo nome de Vinícius de Moraes. Person usou o poema de Vinícius como argumento para o roteiro do filme, no excerto, o poeta descreve um eu-lírico agonizado perante algo maior do que ele. Assim como o protagonista do filme, Carlos, um homem em crise que vive na cidade de São Paulo durante a industrialização, entre os anos 1957 e 1961.
O palco histórico da trama é o governo JK, notável pelo desenvolvimento econômico veloz em que regiões como a de São Paulo foram foco de implementação de parques industriais automotivos formados por multinacionais estrangeiras. Esse crescimento econômico modifica as dinâmicas de classe e agrava os problemas sociais brasileiros. O cineasta Carlos Reichenbach, ex-aluno e colega de Person, ressalta que o filme retrata a perversão do progresso paulistano.
E quem vende outro sonho feliz de cidade
Aprende depressa a chamar-te de realidade
(…)
Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas
Da força da grana que ergue e destrói coisas belas
Trecho de Sampa de Caetano Veloso, a Sampa de Caetano e a de Person são similares. Ambas ilustram as dificuldades de se ascender socialmente na metrópole.
Ao longo do filme, o protagonista — muito similar à Luís da Silva, protagonista do livro Angústia, de Graciliano Ramos — procura se encaixar na lógica da grande cidade, cujos padrões sociais são mediados pelo dinheiro. Porém, quanto mais sucesso profissional Carlos alcança, maior é a sua angústia diante dos confortos burgueses paulistanos, reagindo com desespero e ódio, procurando um escapismo que não parece alcançável.
Desde a primeira cena do longa, Carlos não sabe pra onde fugir. De fora do apartamento, a câmera filma o reflexo da janela nos prédios da metrópole e, no seu interior, um dos acessos de raiva de Carlos com a primeira esposa. Em seguida, Person representa o esplendor de São Paulo com a entrada da música de Cláudio Petraglia e as panorâmicas da cidade com um cuidado de engenheiro. “A câmera faz striptease dos arranha-céus” foi escrito na publicação do Última Hora sobre a abertura do filme. LSP retrata o exterior e o interior: as entranhas de uma metrópole dominante e o interior agoniado do indivíduo. Procurei ficar imóvel e orar, mas fui me afogando em ti mesma / Desaparecendo no teu ser disperso que se contraía como a voragem.
A Sampa de Person chega a se apresentar como um personagem cruel no filme, através dela, a massa inerente, destinada aos crescentes processos automatizados do cotidiano, se aliena ao caos paulistano. Através da perspectiva do angustiado sujeito trabalhador, — pertencente à engrenagem do sistema — , o diretor representa o processo de reificação do cidadão de classe média que enxerga na metrópole a oportunidade de se vincular com a burguesia, em detrimento de classes mais baixas. Carlos é só mais um brasileiro tentando escapar dos ciclos viciosos de uma sociedade excludente.
É curioso que Person parece mostrar ao espectador que a crise de Carlos não é de cunho apenas individual, mas é, também, fruto de uma multidão desumanizada pelos processos mecânicos hodiernos. “O filme era, para mim, um longo processo de raciocínio executado através da observação do comportamento da classe média de nossa cidade que, aos trancos e barrancos, não consegue sair de si mesma e passivamente aceita o seu destino estéril”. LSP ao Estado de Minas.
Carlos vive a sua angústia até o fim, lutando para fugir do inevitável. Ele busca uma carreira profissional de sucesso, se relaciona com mulheres diferentes, mas não consegue encontrar uma motivação no meio disso tudo. Entre o suicídio da última amante e o menosprezo da esposa, Carlos rouba um carro com rumo para o mais longe possível de São Paulo como tentativa desesperada. De que adianta um futuro promissor? Por que insistir em conviver em sociedade?
Porém, ironicamente, Person faz seu personagem despertar, no dia seguinte, no meio da abertura de novas estradas para a metrópole. São Paulo se estende e não permite a emancipação de Carlos, o que lhe resta é aceitar as lógicas vis do capital e afrontar o próprio absurdo. Como o Sísifo de Camus, condenado a carregar um enorme bloco de pedra até o topo de uma colina e todas as vezes que finalmente alcançava o cume da colina, o bloco escapava-lhe e rolava colina abaixo, forçando-o a recomeçar sempre. “Recomeçar. Recomeçar. Recomeçar. Mil vezes recomeçar. Recomeçar de novo. Recomeçar sempre. Recomeçar. Recomeçar”
Em entrevista, Marina Person, atriz e filha do diretor, destaca o quão atemporal o filme se apresenta nos dias de hoje. Carlos, assim como grande parte da população brasileira, é engolido pelo sistema industrial, tornando-se apenas mais uma engrenagem da sociedade. Person, além de iniciar no cinema brasileiro uma reflexão sobre a crise existencial devido ao espaço urbano em transformação, baseado na dinâmica do capitalismo avançado, também abriu espaços para o experimentalismo no cinema com a utilização de tramas mais fragmentadas. São Paulo, S. A. além de ter recebido inúmeros prêmios no exterior, foi considerado pela Abraccine como um dos melhores filmes brasileiros de todos os tempos.
*Sobre o autor: Pedro Vidal é estudante de Cinema e Audiovisual na ESPM, se interessa por cinema, música, literatura e fotografia. Enxerga nos subjetivismos e simbologias da arte um enorme potencial de transformação política e social da sociedade.
Referências:
https://www.youtube.com/watch?v=pBA-x2c2vR8
https://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra67339/sao-paulo-sociedade-anonima
https://www.youtube.com/watch?v=VPEv9zcR5sU
https://abcine.org.br/site/sao-paulo-sociedade-anonima-uma-tragedia-em-tres-atos/