Redescobrindo o espaço urbano pelas lentes de Jem Cohen e Peter B. Hutton

A desmaterialização de espaços anteriormente visitados e a contemplação de paisagens como objetos cinematográficos.

Por Matheus Fortunato*

O cinema experimental sempre buscou atingir novas possibilidades com o plano cinematográfico. Do mais clássico ao estilo Maya Deren ou até mesmo ao mais estrutural no estilo Michael Snow. Entre esses subgêneros do cinema experimental, alguns diretores desenvolveram de forma indireta uma narrativa que utilizasse o cenário urbano como objeto de estudo cinematográfico. Espaços laborais, museus, shoppings, ruas e cidades são ressignificados a partir da narrativa de Jem Cohen e Peter B. Hutton, dois dos cineastas que melhor aproveitaram a utilização de cenários urbanos e a contemplação de paisagens.

JEM COHEN E O URBANO COMO PONTO DE IGNIÇÃO

Seja em um cenário narrativo ou não-narrativo, experimental ou documental, Cohen consegue extrair um retrato bastante minucioso quando escolhe o cenário urbano como ponto de partida para suas histórias. Esse aspecto fica ainda mais evidente em obras como Lost Book Found (1996), Chain (2004) e Museum Hours (2012). Desses três filmes, o que mais se destaca por ser um ponto-chave na carreira de Cohen é Lost Book Found, cujo estilo o diretor chegou a ensaiar em obras como This is a History of New York (1987) — curta-metragem que foi o seu primeiro trabalho da sua série de curtas — , Just Hold Still (1989) e Buried in Light (1994).

É possível também utilizar esses três principais filmes de Cohen como uma divisão na carreira do diretor. Esta divisão ocorre em três momentos, a primeira sendo em Lost Book Found. Este é um momento na carreira dele que consegue ser o ápice de um trabalho que vinha sendo desenvolvido por Cohen há alguns anos, desde o início de sua carreira como cineasta. O segundo momento vem de Chain (2004) sua estreia em longas-metragens e momento de transição para trabalhos um pouco mais narrativos. Enfim, com Museum Hours (2012) a carreira do diretor chega definitivamente em seu ponto mais maduro.

Jem Cohen

A obra de Cohen sempre se baseou em pegar recortes de imagens e informações e em cima disso construir algo novo, o que é a essência de sua obra. O que não deixa de descrever Lost Book Found, em que o narrador do filme consegue criar um equilíbrio aliado a esse recorte de imagens e informações nas ruas de Nova Iorque. Acima de tudo Lost Book Found fala sobre o redescobrimento desses lugares anteriormente conhecidos e como eles se relacionam com a nossa própria consciência. Ao mesmo tempo em que o filme trata sobre essa materialização de espaços, lugares, objetos e informações, ele também faz o completo oposto, nada é mais comum do que a desmaterialização de espaços em uma sociedade em que tudo muda rapidamente, onde cada espaço, rua, museu, shopping torna-se uma gigantesca incerteza.

A ideia central que o filme passa é justamente que a cidade de Nova Iorque é um amontoado de histórias e recordações, algo que o narrador até verbaliza em um momento. Cohen utilizou bastante Nova Iorque em seus trabalhos como a locação que acompanhou o diretor em toda sua carreira. A importância de Lost Book Found para a carreira de Cohen é imensa, o filme pode ser visto justamente como um ensaio para o que ele fará posteriormente em Chain (2004), em que o diretor surge com a proposta de produzir um longa narrativo com características de um documentário.

Cena de Lost Book Found (1996)

COHEN E WALTER BENJAMIN

Assim como o título desta edição “Passagenwerk”, Jem Cohen também teve como inspiração o trabalho de Walter Benjamin. Mais especificamente o próprio Passagenwerk ou Arcades Project para produzir Chain (2004), que é o primeiro longa-metragem de Jem Cohen. O que diferencia Chain de Lost Book Found é a capacidade do diretor manter a essência de sua filmografia, mas ainda assim desenvolvendo uma narrativa que está diretamente relacionada com as questões com que ele sempre trabalhou e que fortalecem os laços dele com Walter Benjamin. Muitas de suas personagens vivem de maneira marginalizada, algo que o diretor tentou representar muito frequentemente, sendo indivíduos e lugares que podem estar ameaçados em uma economia tão globalizada uma de suas maiores preocupações.

Utilizando de uma variedade de locações, Chain é sobre a nossa relação de memória com os lugares e espaços à nossa volta. É um pouco atônito imaginar que algumas de nossas memórias podem estar ligadas a certos lugares, e esses lugares são afetados por uma sociedade que tudo vai mudando rapidamente. Uma loja ou um espaço onde havia uma memória que ligava você àquele lugar acaba deixando um sentimento de vazio quando dá lugar a um novo estabelecimento. É justamente por isso que Chain é um filme que não pode e nem deve ser resumido a um comentário político espertinho.

Cohen coloca o espectador numa postura muito mais de observador do que necessariamente como crítico pré-determinado. Há uma autoconsciência sobre a sociedade que àqueles personagens vivem e o papel que é imposto sobre eles na sociedade, mas o diretor não quer que os seus espectadores já saibam o que vão encontrar. Quando perguntado em uma entrevista se sua obra estaria se tornando declaradamente politizada, Cohen rebate respondendo que não faz filmes para pessoas que já se sentem de uma determinada maneira, ele quer o seu espectador desafiado e intrigado a todo momento, ao ponto de se perguntar a posição política por trás do filme.

Cena de Chain (2004)

O PAPEL DA ARTE E DOS MUSEUS NA RELAÇÃO COM O INDIVÍDUO NO ESPAÇO URBANO EM MUSEUM HOURS

Em Museum Hours (2012), assim como em seu último longa-metragem, Cohen volta a ter dois personagens como ponto central de sua narrativa. Porém, se em Chain o diretor tinha um itinerário de locações, neste filme boa parte do longa se passa no museu de história da arte de Viena. Esse é o trabalho mais maduro de toda a carreira de Jem Cohen. Ainda se encontram todos os elementos marcantes da sua filmografia, desde a sua essência no uso dos recortes de cenários urbanos até às características mais documentais, mas Cohen adiciona novos elementos em sua narrativa tradicional e usa da relação entre Johann, um vigia do museu de Viena, e Anne, uma turista canadense, para discutir temas como o papel da arte como elemento catártico para situações difíceis, da história da arte e também sobre a universalidade da morte.

Cohen ainda executa muito bem seu estilo tradicional de fazer filmes, contando com recortes urbanos da cidade de Viena e também da arquitetura do museu. Outra característica que difere de seus outros filmes é a aproximação entre os personagens: se em Chain os personagens ocupavam um distanciamento até pela marginalização, aqui há uma proximidade maior entre eles. O museu tem o papel de aproximar Johann de Anne e assim criar uma relação de empatia e hombridade entre os dois.

Pelo fato do filme ter uma variedade enorme de elementos, o potencial do filme de gerar discussões é imenso e a forma com que ele deixa isso por conta do espectador é uma das melhores qualidades de Cohen. O mundo de Jem Cohen é um carrossel de sensações. Assim como ele leva as percepções dele para seus filmes, ele tenta sempre transmitir ao espectador essas ideias da mesma forma que ele as recebe, concretizando assim uma liberdade simbólica que o artista dá ao público. O cinema de Jem Cohen é fascinante, seja por sua riqueza de recortes urbanos em uma sociedade globalizada ou pela sua filmografia híbrida, que mescla o narrativo e o documental. É um cinema que reverbera com liberdade em seu espectador.

Cena de Museum Hours (2012)

A CONTEMPLAÇÃO DO URBANO COMO PAISAGEM EM PETER HUTTON

Outro cineasta que soube utilizar muito bem os elementos urbanos em seus filmes foi o Peter Hutton. Há diferenças entre ele e Jem Cohen: Hutton começou a fazer filmes mais cedo, na década de 70. Ele foi um cineasta de obras silenciosas e visou o paisagismo como ferramenta possibilitadora para seu cinema experimental. Assim como na carreira de Cohen, também é possível apontar uma divisão de momentos no trabalho de Hutton. O primeiro momento é no conjunto de três curtas sobre a cidade de Nova Iorque: New York Portrait I, II e III (1979, 1981 e 1990); o segundo momento se dá no estudo sobre o Hudson River, mais especificamente em Study of a River (1997) e Time and Tide (2000) e o último momento, e mais recente de sua carreira, com o que viria a ser com os seus dois últimos filmes At Sea (2007) e Three Landscapes (2012).

Infelizmente Three Landscapes foi o seu último filme, pois o diretor viria a falecer em 2016. O início do trabalho de Hutton também lembra o início do trabalho de Cohen: se por um lado Cohen tinha seus filmes repletos de movimentos de câmera e recortes de imagens e informações, por outro lado Hutton visava uma postura mais contemplativa, observadora e buscando ter um retrato bem objetivo sobre o que filmava. Apesar de ter um estilo um pouco diferente em relação a Cohen, é possível notar temas semelhantes em Hutton como a relação do espaço com situações laborais e o impacto de uma sociedade globalizada em nosso meio.

Peter Hutton

O RETRATO ÍNTIMO DE HUTTON EM UMA NOVA IORQUE RESSIGNIFICADA

Inicialmente, Hutton queria ser pintor. Ele começou a fazer filmes no SFAI (Instituto de Artes de São Francisco) na Califórnia, onde conseguiu bacharelado e mestrado em Belas Artes. Hutton tinha um olhar apurado para paisagens urbanas, seu primeiro momento grandioso como diretor foi o seu conjunto de três curtas-metragens redescobrindo e desmistificando Nova Iorque. Hutton captura justamente o vazio e a solidão presente nas ruas e o distanciamento entre as pessoas, sem necessariamente precisar dizer muito para demonstrar suas percepções, seja por um homem solitário andando em uma tempestade de neve ou pelo jornal cruzando a rua pela força do vento.

O distanciamento presente nas ruas da cidade de Nova Iorque torna-se ainda mais incontestável quando Hutton utiliza a figura de prédios em Manhattan para coexistir com a existência de pessoas marginalizadas. Hutton desmistifica essa Nova Iorque globalmente brilhante transitando para uma cidade solitária, distante e segregada.

Hutton conclui muito bem o seu filme utilizando de dois frames bem simbólicos, o primeiro sendo o de um homem trabalhando no que parece ser uma gigantesca construção e o outro de um outro homem olhando o céu de Nova Iorque aparentemente sozinho. A maior qualidade de Hutton é justamente não precisar utilizar de muitos elementos para demonstrar seu entendimento sobre a cidade nova-iorquina.

Cena de New York Portrait (1990)

O ESTUDO DE HUTTON SOBRE O HUDSON RIVER E SUA RELAÇÃO COM A MARINHA MERCANTE

Influenciado principalmente por seu pai, que serviu na marinha mercante, Peter Hutton teve uma relação bastante íntima com navios e o mar. Essa influência em Hutton está representada em obras como Study of a River (1997), Time and Tide (2000) e At Sea (2007). Hutton disse em uma entrevista que ter ido ao mar pela marinha mercante o ajudou a pagar a sua entrada na escola de artes. Ele transitava entre um semestre no mar e outro na escola de artes e fez esse caminho por um bom tempo. Dito isso, faz muito sentido o interesse de Hutton pelo Hudson River e seu fascínio por navios e o mar como um todo.

Em Study of a River (1997), temos presença da principal particularidade que destaca Hutton como cineasta. O seu olhar contemplativo sobre as paisagens, sobre o oceano, o mar e o meio que o cerca. Study of a River consegue ser uma obra bastante relevante para a carreira de Hutton que destaca suas maiores qualidades como cineasta.

Cena de Study of a River (1997)

Em 2007 temos o primeiro longa-metragem de Peter Hutton, é o filme At Sea (2007). Se em Study of a River o diretor contempla o Hudson River de maneira romântica, aqui Hutton aprecia a memorialização de seus dias como marinheiro mercante. Hutton disse uma vez que seu pai era um romântico e que cresceu influenciado por esse romantismo. Dito isso, At Sea pode ser interpretado como a influência máxima desse romantismo em relação aos navios e a marinha mercante.

Hutton não gostava de dizer e muito menos de ser considerado um cineasta, ele preferia ser interpretado como um artista visual de imagens e não de filmes, até porque ele considerava sua obra mais como anotações, diários e recordações de coisas que interessavam a ele do que de obras fílmicas. É por isso que a apreciação de Hutton pelas paisagens urbanas ou marítimas sempre se destacou em seu trabalho. Assim como Cohen, Hutton estava mais interessado em captar memórias e sentimentos pela sua câmera do que em fazer um filme grandioso.

Cena de At Sea (2007)

TRÊS PAISAGENS NA MEMÓRIA

Poucos filmes falam tanto sobre o cinema de Hutton como Three Landscapes (2013), sua última obra tem três segmentos, em que ele trabalha seus elementos tradicionais como a contemplação de paisagens, a presença do processo laboral e a representação da globalização. O cinema de Peter B. Hutton não está amarrado à contemplação de paisagens do diretor, ao mesmo tempo utiliza como acessório para pincelar sobre temas relevantes mesmo que de maneira indireta. Por outro lado, ele não politiza seus filmes de maneira que o foco seja realmente em guardar momentos e sentimentos na sua própria relação com o cenário urbano-paisagista.

Cena de Three Landscapes (2013)

Portanto, Jem Cohen e Peter Hutton redescobrem as cidades e o cenário urbano de diferentes maneiras por meio de seus filmes. Não necessariamente precisando ser grandioso ou complexo para isso. Bastou a eles o interesse na memorialização de momentos e sentimentos, assim como na contemplação do meio urbano.

*Sobre o autor: Matheus Fortunato é estudante de Administração, é apaixonado por cinema experimental e arte em todas as suas formas. Interessado pela maneira com que o cinema possibilita cada pessoa poder experimentar e produzir arte de diferentes meios.

Referências:

Holland, James Cunning. Afterimage; Berkeley Vol. 39, Iss. 4, (Jan/Feb 2012) Disponível em:

https://www.proquest.com/openview/ad2fac41999934b7790da15777c0dba4/1?pq-origsite=gscholar&cbl=37068

Acessado em: 01 de dezembro de 2021

Corless, K. A Chain Letter to the Future, Closeup Filmcentre. Disponível em:

https://www.closeupfilmcentre.com/vertigo_magazine/volume-2-issue-3-summer-2002/a-chain-letter-to-the-future/

Acessado em: 01 de dezembro de 2021.

CINEMAD. Peter Hutton. 2009. Disponível em: http://www.cinemad.iblamesociety.com/2009/11/peter-hutton.html.

Acessado em: 03 de dezembro de 2021

Kohn, E. Jem Cohen Explains Why ‘Museum Hours’ Will Help You Grapple With Art and Life, Disponível em:

https://www.indiewire.com/2013/06/jem-cohen-explains-why-museum-hours-will-help-you-grapple-with-art-and-life-37235/

Acessado em: 6 de dezembro de 2021

Hutton, Peter. Letter from Bangkok [1972]. Canyon Cinema: The Life and Times of an Independent Film Distributor, Berkeley: University of California Press, 2008, pp. 161–161. Disponível em: https://doi.org/10.1525/9780520940611-049

Acessado em: 7 de dezembro de 2021

Ahwesh, Peggy.Millennium Film Journal; New York Iss. 64, (Fall 2016): 76. Disponível em:

https://www.proquest.com/openview/d73f47a69f2496238f159b0d3490ee0e/1?pq-origsite=gscholar&cbl=46091

Acessado em: 10 de dezembro de 2021