Renovando o comprometimento do diretor com o cinema de guerrilha, o filme transforma o sucateamento das próprias imagens em magnetismo
Davi Krasilchik
A paixão tende a ser um sentimento difícil de se decifrar. Não existem muitas formas de explicar o que nos atrai por certas coisas, o que permite a algumas delas permanecerem impressas na mente. Seja nos símbolos, fazeres ou pessoas, ela permeia uma série de potências, motivando buscas e consequentes colisões.
São atritos como esse, inconsequentes e inexplicáveis, que motivam projetos como Paixão Sinistra (2024), nova produção da carioca Mang Bang Vídeos. A produtora tem se consolidado, no cinema independente, pelo uso de uma estética próxima de um estilo marginal, que renega os padrões de uma imagem mais industrial. O filme é dirigido pelo cineasta e crítico João Pedro Faro e acompanha as violentas incursões de um grupo de criminosos que sequestram outra figura misteriosa.
Filmado com uma câmera digital de baixa qualidade, o filme se manifesta enquanto ruído plástico, erguido da fricção entre os planos instáveis que buscam algum objeto de enquadramento. Isso dialoga com a linha narrativa central, que estabelece um sequestro jamais esclarecido ao público e operado por detrás de máscaras e grãos digitais. É uma forma agressiva de logo magnetizar a atenção do público, ainda que jamais intencione conduzi-la através de uma narrativa convencional.
Mas cabe pensar como esse senso de atração pelas ações se manifesta em um campo de sobreposições, seja pela distorção de aspectos sonoros, pelo ritmo intenso da montagem ou por meio das lógicas inconscientes de junção entre planos. Existem momentos em que a luz modula esse último papel, por vezes o som assume essa função, mas sempre resta esse senso de disrupção, convidando a plateia a tentar compreender o que justifica a ordenação do todo.
Tem-se uma obra que aposta na disposição de seu espectador, em reordenar a sua maneira de processar o que lhe é exposto, demolir as próprias barreiras e se tornar uma parte dessa sinfonia de fluxos e impressões. Nesse sentido, chama a atenção como o filme aposta em passagens de teor escatológicas, sejam essas as mais literais – como as cenas de tortura, sempre conduzidas por uma montagem de atração – ou as subjetivas.
Em determinado momento, por exemplo, um dos sequestradores testemunha a sua vítima vomitando, passagem que paralisa o frenesi total do andamento. É um plano mais longo que acaba reconhecendo, ainda que acidentalmente, a essência alucinógena do projeto, dificil de digerir. Atua igualmente como espécie de dissecação analítica, no que diz respeito a separações de estímulos fundamentais de percepção.
Nessa relação entre os corpos e as imagens de indefinição, sugerindo um colapso compartilhado entre a forma do próprio filme e aquele absorvido pelas trocas entre aquelas personagens. Traz novamente esse teor de uma força suspensa como poder coesivo, que unifica ideias, impulsos e devaneios transmitidos entre símbolos.
É interessante como isso também se materializa na figura de um cosplayer de Michael Jackson – ao menos é o que remete o terno branco –, que anda pela cidade em planos superexpostos, trazendo uma verdadeira fantasia para o centro do Rio. Suas ações parecem pouco calculadas, e a maneira como a câmera se adapta aos imprevistos, à atenção dos pedestres especialmente, veicula mais uma vez esse ideal do magnetismo pelas imagens.
Resta uma sinfonia de conexões incertas, pintadas em tela pelos ruídos da câmera digital e as dificuldades do frenesi da mesma em enquadrar os corpos que vagam pela capital carioca, em busca uns dos outros. Tudo isso faz de “Paixão Sinistra” uma verdadeira ode ao ato de se filmar e aos inexplicáveis universos que residem no intervalo entre um plano e outro.