Por onde anda a Manic Pixie Dream Girl?

Por Duda dos Anjos

Um rosto bonito, um corpo padrão magro, alguns gostos que se encaixavam perfeitamente com os do protagonista, espírito aventureiro e pronto, você terá a Manic Pixie Dream Girl perfeita saindo do forno. Subversiva ao papel do interesse amoroso feminino, mas ainda ocupando essa exata posição em cores diferentes, a Manic Pixie Dream Girl representa a mulher ideal para o público masculino e a comparação inoportuna para o feminino, principalmente aquelas que integram o meio cultural alternativo ou geek — é quase um rito de passagem para aderir ao feminismo ouvir que / nove entre dez garotas já ouviram que lembravam muito a Ramona Flowers ou Clementine Winslet por fazerem algo que, no imaginário masculino,é completamente inesperado de uma garota, tornando-a especial. Essas personagens são recorrentemente objeto de debate entre fãs, que julgam se foram egoístas e maldosas ao escolher sua autonomia ao invés do interesse romântico masculino. Como é de se esperar, as mulheres reais que se identificavam minimamente com a personagem — já que não havia grande variedade da qual escolher — estavam na linha de defesa da liberdade, que se assemelhava muito à sua própria. O auge da Manic Pixie já passou, porém ela ainda habita entre nós, agora, como personagens tridimensionais, nascidas nas mãos daquelas mulheres que teriam sido a inspiração para as MPDG de 2003.

Apesar da categoria própria, esse tipo de personagem nunca existiu para além de ser um catalisador de mudança radical e filosófica de vida do protagonista. Termo criado em 2005 pelo crítico Nathan Rabin na resenha de Elizabethtown (2005), essa mulher “existia somente na imaginação febril de escritores-diretores mega sensíveis para ensinar homens a abraçar a vida e seus infinitos mistérios”, como escreveu. A MPDG incomoda só o suficiente para tirar o protagonista de sua zona de conforto; gosta de coisas consideradas alternativas, mas não muitas, para nunca ofuscar a personalidade dele; tem traumas, medos e desejos, sim, mas expressos em jeito e quantidade que o seu par romântico consiga compreender e lidar. Ela é muito aventureira dentro de suas condições de branca, classe média, cis e heterossexual, e tem a função de revolucionar o sentido de amor para o protagonista, já que está sempre ligada à trama por um laço romântico.

Entre 2005–2015, a personagem impregnou o estilo, vida e trabalho de algumas artistas que a incorporaram. O estilo tweed de Zooey DesChanel ficou diretamente ligado à Summer de 500 Dias Com Ela (2009) e se arrastou para sua personagem em New Girl, Jess, que a colocou nessa mesma posição de apoio na vida dos homens à sua volta apesar de ser a protagonista. Kirsten Dunst foi o par romântico espontâneo e inocente muitas outras vezes depois de Elizabethtown (2005), e Gwyneth Paltrow até atribui esse isolamento ao lançamento de sua empresa de cosméticos, Goop; “eu não podia ficar beijando o Matt Damon em frente às câmeras para sempre”, ela afirma na sua série para Netflix. As matérias que saíam sobre essas atrizes reforçaram esse ângulo, associando-as aos seus parceiros mesmo sem necessidade e as pintando como as peças excêntricas de Hollywood em comparação com todas as outras mulheres da indústria.

No meio da cultura alternativa, na qual esses filmes tinham muito espaço, a Manic foi uma cruz posta nas costas das mulheres que inspiraram esses personagens. O termo em si é machista porque dá nome a uma personagem construída a base de conservadorismo com roupagem de Jovem Anos 2000; o aspecto “excêntrico” que todas as MPDG compartilham não é nada mais do que ter uma personalidade e querer integrar espaços tradicionalmente dominados por homens como o mundo da arte ou música alternativa. As mulheres que inspiraram essas personagens, que tinham esse mesmo objetivo, foram encurraladas a serem a Summer de carne e osso: pela falta de representações holísticas de mulheres no cinema e por estarem envolvidas com o meio que fetichiza suas paixões e interesses, não tinham escapatória se não dançar conforme essa música.

O documentário Shirkers (2018), de Sandi Tan, sem querer retrata como essa cultura reflete nos reais jogos de poder e o porquê de ouvir o lado das mulheres vindo por elas é tão importante. O documentário é um relato de como o filme homônimo, dirigido por Sandi ainda adolescente, só foi achado e revelado mais de 20 anos depois de ser feito. Ela o produziu com seu professor Paul, que a olhava como essa garota fascinante, apaixonada por cinema, cheia de vida, diferente das outras, mas que não a respeitava o suficiente para dar satisfação do que fez ou onde estão os rolos de filme do longa que não era só dele. Nos olhos de Paul, Sandi era a Manic Pixie Dream Girl de sua história, que foi deixada de lado assim que não era mais útil para ele, e teria sido só isso se o documentário não tivesse sido feito por ela mesma, mostrando todo o impacto posterior e os atingidos por ele. Tan foi posta nesse lugar digno de um roteiro, como tantas outras foram e não foi a público.

Felizmente, cada vez menos é possível localizar esse arquétipo nas produções culturais, não pela boa vontade e repentina conscientização da indústria, mas pela tomada de poder daquelas que eram vistas como as Manic Pixie Dream Girls. Essas mulheres sempre existiram recortadas segundo o interesse de produtores e roteiristas. Não era preocupação deles colocá-las em foco, então, foram anos até que diretoras, produtoras, roteiristas ganhassem espaço no mercado cinematográfico para re-contar a vida dessas mulheres, com todos os outros lados riquíssimos que carregam dentro de si. A tomada do comando da narrativa por mulheres entregou filmes complexos sobre suas dúvidas e medos, deixando-as transbordar pelos minutos de filme, sem precisar que sirvam para a construção de plot que não a de si mesmas. A diretora e roteirista Greta Gerwig, nome afluente nesse movimento de redirecionar o foco da narrativa cinematográfica para mulheres com filmes como Lady Bird (2017) e Little Woman(2019), sintetizou a carência por esse tipo de conteúdo quando constatou,em entrevista, que “[não vejo] muitos filmes sobre meninas de 17 anos onde a questão não é ‘será que ela vai encontrar o cara certo?’. A pergunta deveria ser “será que ela vai ocupar sua humanidade por inteiro?”, porque acho que estamos mal acostumados a ver mulheres,principalmente mulheres jovens, como seres humanos”.

Dentro do recorte temporal dos anos 90 até a atualidade, Sofia Coppola foi responsável por centralizar a vida de mulheres em seus filmes antes mesmo de Nathan Rabin se tornar crítico, e pavimentou o caminho para que outras diretoras pudessem fazer o mesmo. Sutil, mas hoje tido como referência quando se fala da superficialidade com a qual mulheres são percebidas pela sociedade patriarcal, As Virgens Suicidas (1999) intencionalmente narra o suicido das irmãs Lisbon pelos olhos do vizinho Trip Fontaine, que fala disso como um dos motivos por elas serem tão misteriosas e magnéticas. Sua carreira seguiu focada em protagonistas femininas e por muito tempo foi a única diretora mulher referência no mundo ocidental. Frances Ha (2012), co-dirigido por Gerwig e marido Noah Baumbach, pega a deixa de Coppola e engata a mudança de perspectiva com outras diretoras como Miranda July (Kadillionaire, 2020)e Julia Ducournau (Raw, 2016). Diferente dos filmes de Sofia que usam muito do silêncio como comunicador, Greta e Noah rechearam uma hora e meia de diálogos e a trajetória de uma amizade entre duas amigas de faculdade por seus altos e baixos. O elemento romântico é presente, sim, mas o arco da Frances se desenvolve no dia a dia em meio aos auto questionamentos e tentar priorizar suas paixões e relacionamentos apesar do cotidiano e falta de dinheiro.

As meninas entusiasmadas, que fazem os outros descobrirem que gostam de ir ao Karaokê e são apaixonadas por dança ainda existem, mas agora as câmeras estão as filmando por inteiro, finalmente.