Enquanto a dissociação entre produto e arte permanecer em extremos, não haverá filme que encontre justificativa em seu mero ato de existir
Davi Krasilchik
Em tempos de mobilização por novas políticas públicas e com a recente renovação da Lei da Cota de Telas – que implica em um mínimo de sessões destinadas exclusivamente a filmes brasileiros –, é irônico dizer que nunca foi tão difícil justificar o cinema brasileiro. Em seus devidos nichos, as discussões sobre a sua relevância estão sempre crescendo, advogando pela importância dos nossos festivais, das produções independentes e da reverberação da cultura nacional em imagem e som.
Pensando na pluralidade de formatos, por outro lado, atravessamos dificuldades. Talvez menos em relação à produção dessas obras, e mais em respeito a sua circulação. Dos filmes brasileiros que entram semanalmente em cartaz, é raro – quando não impossível –, testemunhar complexos e cinemas de shopping se interessarem por produções não legitimadas por selos como Globo Filmes ou rostos de grande projeção, caso do recente sucesso com Ingrid Guimarães e Tatá Werneck.
Não é fácil justificar a existência de um projeto. Em tempos de consumo cada vez mais acelerado, é comum que os filmes tentem se vangloriar de serem mais ou menos dignos de atenção. Isso impera a filiação de autores a linguagens ou assuntos específicos, que estejam em alta. É mais fácil validar uma produção por sua relevância temática do que por seu modo de articulação. Embora muitos se adaptem a essas necessidades, outros sacrificam sua assinatura específica em nome dessa aceitação.
Seria injusto renegar toda responsabilidade aos “novos tempos”, especialmente em um país cujo cinema nasceu de uma conturbada construção terceiro mundista. Da sistematização de ideais redutores perante o estrangeiro à burocracia de editais que renegam projetos pouco habituais, testemunhamos uma grande dependência da circulação alternativa e do boca a boca. Por mais que importantes salas de exibição se prontifiquem a impulsionar produções independentes, a dissociação entre essa resistência e a arrecadação desses projetos ainda é muito evidente.
É claro que não devemos reproduzir discursos simplistas. Tratar desse assunto é diferente de menosprezar sucessos de bilheteria como Minha Mãe é Uma Peça, ou mesmo ignorar a importância de se ter um novo Walter Salles – que renova sua filmografia sustentada por questões históricas – em grandes festivais internacionais. Sequer é necessário afirmar que a associação entre o cinema e as discussões sociais também acontece de forma natural. Não há como diminuir o peso desses projetos para a indústria como um todo, permitindo a sua manutenção e inclusive a continuidade de criações alternativas. Mas há de se questionar a falta de coragem no vislumbre de outras produções como possíveis produtos.
Temendo pelo futuro de seu emprego, Zeca implora para que Lucas não o deixe dormir até tarde. Ele alerta o amigo da possibilidade de se deparar com outra versão de si na manhã seguinte, mas insiste para que se mantenha firme e lhe obrigue a sair da cama. Assim se inicia O Dia Que Te Conheci, talvez uma das melhores subversões dessa dicotomia que apequena projetos autossuficientes.
Preso entre dois mundos, o protagonista de Renato Novaes – aqui dirigido pelo irmão, André Novais de Oliveira – se apresenta como um homem que deseja acordar, mas não consegue deixar de dormir. Ele procura refúgio em um mundo de dificuldades banais, onde os atrasos do transporte público desanimam a ida até o trabalho e amigos deixam de confirmar se a cerveja de sexta à noite se mantém de pé. Obstáculos comuns, mas nem por isso menos centrais.
Trabalhando como bibliotecário de uma escola pública a mais de uma hora de casa, Zeca depende do recreio das crianças para poder se ocupar, se sentir útil. Não que o ócio seja necessariamente um inimigo, mas o obriga a enfrentar longos intervalos de monotonia e silêncio. Intervalos que se sucedem dia após dia, até que certo elemento entre em cena e desequilibre o ciclo sem fim.
Tudo muda quando Luisa (Grace Passô), uma secretária do mesmo colégio, aparece com uma triste notícia: os atrasos numerosos de Zeca justificam a sua demissão. É no fim de uma relação profissional – e que se converte em realidade apenas naquele fatídico momento – que um relacionamento pessoal se inicia. A partir daí, André Novais conduz esse inesperado encontro com a mesma naturalidade da mais orgânica das relações, predestinada a existir desde o primeiro respiro.
Nem por isso sua direção se afasta dos demais trabalhos que acumula na produtora Filmes de Plástico. O olhar particular de André, sua forma de observar o tempo, moldá-lo à sua maneira, e oferecer ao espectador a margem necessária para partilhar da experiência, nada disso se subordina ao ímpeto de se construir um longa mais acessível.
Em sessão lotada no Cinesesc, exibido na Mostra Internacional de São Paulo de 2023, o filme arrancou risadas desde o primeiro segundo. Por mais de um ano, o filme foi agraciado apenas apenas por uma esfera já habituada aos seus projetos, mas sua trajetória se transformou. Distribuído pela Malute, derivada da própria Filmes de Plástico, o filme estreou comercialmente no dia 26 de setembro deste ano.
Podemos retornar à observação do longa – ou “longuinha”, como diz André, pela curta duração de 70 minutos – enquanto representante desse momento dúbio para a circulação.
Desde Fantasmas, curta-metragem lançado em 2010, o cineasta demonstra habilidade na construção de recortes muito específicos e palpáveis de espaços e tempos. Nesse caso, ele motiva quem assiste a se projetar para dentro da tela, provocando quem assiste com a ausência física das personagens que sustentam um diálogo como condução narrativa. Nos tornamos parte da experiência, complementando o vácuo a partir do imaginário.
Ainda que esse último esteja em uma esfera mais experimental, O Dia Que Te Conheci preserva essas modulações do tempo. Ambientado no decorrer de um dia, se permite espelhar os estados da dupla de personagens, que se veem atravessados pela fabulação e o realismo. Se a narrativa preserva o trânsito na estrada pela manhã e o congestionamento do retorno às vésperas do final de semana, são momentos de deslocamento sobrepostos por uma trilha saída de um conto de fadas.
Momentos como esse, que preservam a monotonia do dia a dia, o deslocamento de um ponto ao outro, seriam descartados por um projeto subordinado ao encantamento constante do espectador. Mas o filme de Novais se desvencilha dessa urgência em nome da própria forma, mesmo na abordagem de seus temas. Zeca e Luisa são os únicos funcionários negros da escola em que trabalham, tendo nunca interagido antes do infortúnio. Mais tarde, trocam confidências ao citar os nomes de seus remédios para depressão e ansiedade, fugindo da timidez repentina ao ler bulas e outras instruções de consumo.
Ainda que essas duas passagens revelem leituras de recortes raciais, comportamentos contemporâneos e dialoguem com demais questões da sociedade, é importante observar como tais discussões surgem como consequência do projeto, e não o contrário. É no formato proposto pelo filme, com seu humor, seu tempo e ritmo específicos e a abertura dada a dupla de atores que o projeto se permite abordar esses assuntos.
Ainda que não possamos reduzir a motivação de um projeto a um único fator, é evidente que o filme se permite a um fascínio por si mesmo. Segue por essa dupla dimensão naturalista e fabulatória, em que o sonho não se estabelece como um transe a ser superado, e a realidade não se previne contra rupturas fantasiosas. Somos testemunhas de um intercâmbio entre uma obra que prioriza os seus protagonistas, seguindo o seu ritmo cômico e singelas observações do cotidiano, enquanto discute e questiona pressões e justificativas que poderia levantar, refletindo esse espaço confuso da existência cultural.
Se o filme de André Novais bebe desse estado duplo, Greice o incorpora de outra maneira. Greice dos Santos é uma jovem cearense que estuda na Universidade das Belas Artes de Lisboa. Ela estuda em um prédio de relíquias e estátuas antigas, cada uma escondendo o seu próprio passado, a sua própria história. Sua natureza se confunde com um estado anterior ao do mármore esculpido: a estudante busca a sua forma, se adaptando aos rumos que aparecem em sua vida, se apaixonando por um, por outro, se permitindo seguir as mudanças que não consegue prever.
Quando Greice é acusada de adulterar uma obra da instituição, ela se vê forçada a retornar ao Brasil, onde perpetua uma série de artimanhas, jogos e persuasões. Quem prevalece nesses processos não é ninguém além dela, mestre na variação entre máscaras que pouco a pouco conquistam o espectador.
A personagem nunca se esconde de quem realmente é, apesar da identidade fluída. Greice dos Santos é uma quimera em transformação, variando entre a fábula, a comédia de costumes e o drama de amadurecimento. Seja pelo olhar da atriz Amandyra ou da própria câmera, não existem juízos que modulem a nossa percepção; nossa protagonista não precisa se justificar para ninguém.
O filme de Leonardo Mouramateus também não procura formas de ressaltar sua relevância. Não existe o desespero de se provar ao que veio, muito menos uma falta de convicção por si por caminhar pelo cinema de gênero. Surge um jogo de reconhecimento do cinema por essência. Imagens, ilustrações, projetadas por seus autores, influenciando sua auto percepção e reconhecendo a beleza inerente a esse intercâmbio.
A direção de Mouramateus lida de forma incrivelmente direta com suas imagens. São poucos os movimentos usados para entrelaçar ações, acontecimentos e espaços, mas toda observação acaba tendo um peso. É o caso da pequena panorâmica que apresenta a personagem logo ao começo, vinculando ela ao seu pequeno apartamento com problemas de encanamento.
Vemos isso zoom out paciente que se afasta do quadro no quarto de hotel. Na fusão entre o plano de reação de Greice e a fumaça que se espalha pela apresentação da cantora portuguesa Cléa. A montagem estabelece uma relação muito clara entre as personagens, seus ambientes e signos, se deliciando com essa relação constante do filme entre a ficção e o real.
Distante de entender esse diálogo como escapismo, é na relação com o fabular que o longa encontra a sua propulsão. O diário de Greice esconde aspectos de quem ela gostaria de ser. A máscara cosmética que produz, em um quarto de hotel, esconde a sua verdadeira feição perante um acontecimento durante a maior parte do plano. Seu olhar, a sua forma de enxergar o mundo, é a força regente de todo o projeto.
É evidente que Greice acompanha uma jovem interseccionada por diferentes esferas culturais. Seu retorno ao Brasil suscita a maior parte de suas transformações, revela a ânsia típica de uma juventude contemporânea e flerta com a leitura de uma classe média alta que é atravessada por uma certa estaticidade e falta de propósito nas próprias conquistas.
Tudo mediado por um prisma fantasioso, sem que o discurso se sobreponha à crença em suas próprias potências. É um filme que se propõe a ter sua acessibilidade na mistura entre linguagens e experimentações. Ainda que talvez se apresente como uma das obras mais acessíveis de Mouramateus, isso não compromete o estilo do cineasta de explorar suas imagens através de propostas de dissolução e intercâmbio entre as mesmas e os seus personagens.
É uma obra que, infelizmente – pelo menos na cidade de São Paulo –, já passou por seu teste comercial, que não parece ter transgredido os círculos costumeiramente reservados a produções do tipo. Ainda que isso não deva ser considerado, em nenhuma instância, sinônimo de qualidade, há de se questionar o porquê da desvalorização desses filmes como potenciais “sucessos” de bilheteria.
O acréscimo na circulação de obras como O Dia Que Te Conheci e Greice beneficiariam o cinema com filmes desse tipo. Não é preciso tratar do desconhecimento de muitos brasileiros em relação à sua própria indústria cinematográfica, conhecido como uma das principais causas dessa mazela cultural. Mas enquanto a dissociação entre produto e arte permanecer em extremos, não haverá filme que encontre justificativa em seu mero ato de existir.