O Cinema da Boca do Lixo, movimento cinematográfico brasileiro que se estabeleceu no centro de São Paulo, tem sua devida importância subestimada devido ao apelo ao erótico e enfoque no gosto das massas. Confira, nesse texto, algumas das questões que concernem o precursor do Cinema Marginal, incluindo os benefícios de sua consolidação na capital paulistana e a retratação desta e de seus moradores pelos cineastas da Boca.
Por Juliana Hipólito*
A Boca do Lixo, forma como eram conhecidas algumas das ruas do bairro da Luz, por volta de 1950 passou a ser um point de prostituição na capital paulista, atraindo, para além das prostitutas, outros indivíduos que eram tidos como marginalizados. Concomitantemente, distribuidoras como a Columbia, a Paramount, a Warner, a Art Filmes, a Fama Filmes, a PelMex, a França Filmes do Brasil, a Paris Filmes, dentre outras, se instalaram na mesma região, devido à proximidade entre as estações ferroviárias e rodoviária e a Boca. Do conflito entre escritórios voltados para a sétima arte e a atividade de trabalhadoras do sexo surgiu, incrivelmente, um dos movimentos cinematográficos mais relevantes nacionalmente: o Cinema da Boca do Lixo.
Com seu enfoque em pessoas marginalizadas e na retratação da vida destas a partir de uma perspectiva amoral, basicamente era posto em xeque qualquer sistema de valores criado e aplicado na sociedade daquela época. O Cinema da Boca, aquele que é tido por alguns como uma terceira fase do Cinema Novo e por outros como uma completa contradição da estética cinemanovista, perdurou entre as décadas de 60 e 80 e foi um sucesso de público. Como principais cineastas que compuseram o movimento, podemos citar Rogério Sganzerla, José Mojica Marins, Carlos Reichenbach, Ozualdo Candeias, João Callegaro, etc. Com forte apelo erótico em boa parte das narrativas, foi-se criado um novo gênero, conhecido como pornochanchadas, e em cima disso foi construído um diálogo com os gostos e preferências das massas.
No entanto, é necessário frisar que o intuito dos cineastas da Boca não era estritamente mercantilista, girando em torno da produção de um filme cujo lucro era rapidamente investido em outro. Os autores também buscavam por independência criativa, o que ocasionou o surgimento de diretores dos mais diversos estilos. Nesse quesito, é possível citar as obras de José Mojica Marins, que encontrou na Boca uma abertura para dar vazão a um dos personagens mais conhecidos da cinematografia brasileira: o Zé do Caixão.
Para Fernão Ramos, organizador do livro História do Cinema Brasileiro, o que atraía os demais cineastas da Boca na filmografia de Mojica era a sua capacidade de transpassar o grotesco e o disforme, além de ter em seus filmes um certo primitivismo quanto à linguagem, seja pela direção de atores, pela decupagem ou por outros aspectos técnicos.
Os filmes da Boca, isentos de apoio financeiro governamental, tinham como investidores os próprios produtores, que ao vislumbrarem qualquer possibilidade de lucro que fosse, rapidamente introduziam os recursos necessários para a produção dos longas. Em seguida, eram necessários os acordos com os exibidores, que devido à reserva de mercado traduzida na sólida implementação de uma cota de tela, isto é, uma quantidade de dias reservados especialmente para a exibição de filmes brasileiros, optavam por exibir aqueles que atrairiam maior audiência. Essas produções bem sucedidas, em sua maioria, possuíam narrativas grotescas, com apelo ao erótico ou com demais características do cinema B norte-americano, composto por filmes de baixo orçamento, provenientes de pequenos estúdios e voltados para os gêneros faroeste, horror ou de gangsters.
É necessário, ainda, mencionar o Cinema Marginal, que se desdobrou entre 1967 e 1971, posterior à chegada de Carlos Reichenbach na Boca. Era então um movimento mais intelectual, que tinha o intuito de ir contra a ditadura militar que assolava o país. O Cinema Marginal e o Cinema da Boca do Lixo, embora ambientados no mesmo espaço físico (mas não só, pois também houve uma produção massiva pertencente ao Cinema Marginal no Rio de Janeiro), são dois momentos diferentes para a história do cinema brasileiro, conforme declara o próprio diretor.
Durante seu ápice nos anos 70, o Cinema da Boca correspondeu a 50% da produção fílmica brasileira. Com tamanho sucesso, ninguém conseguiria prever naquela época que seu fim chegaria ao final da década de 80. Isso ocorreu por dois principais motivos: dificuldades com a Embrafilme e a entrada de filmes pornográficos estrangeiros nas salas de exibição. A Embrafilme, órgão federal criado em 1969 especializado em estimular a exibição internacional de filmes brasileiros, a partir de mudanças legislativas, passou a regulamentar os acordos de co-produções entre distribuidoras e importadoras e as produções da Boca. Na prática, isso culminou num maior favorecimento das realizações audiovisuais feitas no Rio de Janeiro, em detrimento da indústria paulistana. João Callegaro, outro diretor da Boca do Lixo, chegou a afirmar: “A Embrafilme atrapalhou todo o cinema nacional. Principalmente o de São Paulo. Corrupção passiva, clientelismo, panelinhas e até ideologias estapafúrdias condicionavam a concessão dos financiamentos”. Isso se deve ao fato de que os trâmites necessários para a execução dos filmes da Boca, sem a interceptação da Embrafilme, tinham maior agilidade.
O segundo motivo é justamente a adesão do circuito exibidor aos filmes com sexo explícito, tendo como precursor “O Império dos Sentidos” (1976), de Nagisa Oshima. Alguns diretores da região da Luz tentaram seguir pelo mesmo caminho, no entanto, a maioria das produções continuaram cedendo a um erotismo mais contido. Na verdade, os próprios realizadores, como Carlos Reichenbach, entendiam que as produções pornográficas implicaram no desmonte do Cinema da Boca do Lixo, uma vez que o público agora estava acostumado a assistir aos filmes e se deparar com genitálias expostas e atos libidinosos sem censura. Rafaelle Rossi, em 1981, lançou “Coisas Eróticas”, cuja bilheteria foi assustadora: 4 milhões de ingressos em dois meses. Porém, segundo lembra o diretor Alfredo Sternheim, não era somente o Cinema da Boca que sofreu um desmonte: a inflação chegava a 80% ao ano, além da reserva de mercado não ser devidamente fiscalizada, isto é, as obras internacionais tinham vantagem.
O Cinema da Boca do Lixo é surpreendente por demonstrar como é possível realizar obras fílmicas contando com poucos recursos, mas atraindo um público expressivo. É um dos movimentos cinematográficos brasileiros mais marcantes para a nossa história, e é necessário compreender a lógica de produção vigente em vez de somente vulgarizar as narrativas por conta do erotismo que as permeia. Elas são, pelo contrário, inventivas e retratam pessoas que, querendo ou não, fazem parte da realidade nacional.
*Juliana Hipólito é estudante de Cinema e Audiovisual pela ESPM. No que tange ao cinema, gosta de fazer análises semióticas e pensar na sétima arte como a linguagem artística mais poderosa, pois abarca um potencial de articulação de massas e de disseminação de soft power.
Referências bibliográficas
RAMOS, Fernão; História do Cinema Brasileiro. São Paulo: Círculo do Livro, 1987. p. 380–393
STERNHEIM, Alfredo. Cinema da Boca: Dicionário de Diretores. São Paulo: Imprensa Oficial, 2005. p. 14–45.
Antropofagia Marginal. Dirigido por Gabriel Egea e Larissa Basilio. São Paulo: Cásper Líbero, 2021. 38 min.