Taipei por Edward Yang

Por Felipe Palmieri

Taipei é uma cidade no extremo-norte da ilha de Taiwan. Situada na República da China, da qual é a capital, a cidade de mais de 6 milhões de habitantes figura como cerne de diversas questões políticas, sociais e econômicas — é a capital que define o lado capitalista da divisão chinesa ocorrida após a revolução. É um contexto complexo, que pesa sobre o país e sua população das mais diversas formas e efeitos, seja na cultura, na postura diplomática ou até mesmo na estrutura trabalhista.

Nos anos 80, mais especificamente a partir do filme de antologia In Our Time (1982) — o qual reuniu quatro jovens diretores taiwaneses na narração de histórias atravessando as décadas de 1950 à 1980 –, surge um grupo de cineastas iniciantes que buscam representar a vivência e situação reais de Taiwan por intermédio do cinema. Dentre esses cineastas estava um dos citados líderes do próprio movimento, Edward Yang.

Yang foi um homem que dedicou quase que inteiramente sua análise ao escopo regional de Taipei, seja a capital em si ou esta adornada da metrópole que a circunda. No período de sua carreira como cineasta, Edward Yang realizou 7 longa-metragens cinematográficos — cuja imensa maioria das histórias se desdobram na cidade de Taipei. Como objeto central de seus filmes, a cidade torna-se uma espécie de veio temático na obra do diretor ao servir como fonte inspiradora para os conflitos, tanto internos quanto externos, das personagens de Yang.

O cineasta passou muito de sua vida estudando nos Estados Unidos — local onde primeiro interessou-se pela ideia de trabalhar com cinema e onde, por consequência, acabou sendo exposto ao tipo de capitalismo que ainda estava para se desenvolver em Taiwan. Isto posto, Edward Yang tornou-se um cineasta que foca muito seu olhar nas pequenas intrusões americanas na vida da República da China. Esse olhar é visível em todos os momentos de sua carreira, e é principalmente conspícuo na paisagem de Taipei. A maior cidade de um país está sempre fadada a um progresso mais acelerado que o de suas cidades vicinais — e dessa forma instaurou-se o palco para que os filmes de Yang tomassem forma.

Aquele Dia, na Praia (1983)

Em Aquele Dia, na Praia, o primeiro longa-metragem de Yang, muitos dos aspectos que virão a defini-lo como cineasta estão já presentes e visíveis. Pertendo à ideia de cidade, aqui os personagens tem entre Taipei e o espaço rural a do contraste da ideia de modernidade e de tradição, respectivamente — as quais são apresentadas como igualmente nocivas à vida das personagens.

Com Sylvia Chang no papel principal de Jia-Li, somos guiados através de suas memórias para o entendimento de como o progresso empresarial e corporativo encontrado nas modernices de Taipei em nada se difere das amarras impostas pela tradição comportamental e restrita chinesa. Ambos esses aspectos são justapostos — na visão ligeiramente pessimista do jovem cineasta Yang — como um fardo carregado por Taiwan e consequentemente por sua população, de um país atado a extremos diferentes do espectro na busca por uma identidade em meio à incerteza.

História de Taipei (1985)

Em História de Taipei, tudo que era característico na abordagem do longa anterior fica mais exacerbado e mais polido. Na narrativa do casal Chin e Lung, interpretados respectivamente por Chin Tsai e Hou Hsiao-hsien, encontramo-nos como audiência expostos a vidas à deriva, absolutamente sujeitas ao contexto econômico-social em que se encontram. Os rumos a serem tomados são submissos à Taipei, que aqui é o verdadeiro personagem principal.

Ke ponderando sobre a paisagem de Taipei em História de Taipei

Yang utiliza do espaço urbano em todas as oportunidades possíveis, criando, através do tráfego automobilístico constante e dos arranha-céus, uma narrativa subjacente à principal sobre a transformação pela qual Taipei vem passando. Esse paralelo narrativo é exposto desde o início pelo personagem Ke, interpretado por Ko I-Chen, um arquiteto que afirma mal reconhecer mais quais prédios ele mesmo desenhou e quais são de outras pessoas, pela falta de identidade no horizonte modernizado de Taipei.

Todos os personagens, de modo mais exacerbado ou menos, encontram-se também em estado transiente. Estes expressam vocalmente e frequentemente seus objetivos de escapar de Taipei, mudar-se para os Estados Unidos ou para o Japão — país cuja cultura é muito influente sobre a taiwanesa, herança do período no qual a ilha esteve sob domínio do Império Japonês.

Mas apesar do desejo de partir, o protagonista Lung, o qual acaba de retornar de uma viagem aos EUA, sabe que é um anseio em vão. Los Angeles já é muito parecida com Taipei. Assim como em qualquer outra grande cidade moderna. E todos os personagens acabam submetidos ao mesmo destino — consciente ou inconscientemente — a partir dessa noção, de estarem presos espacialmente, sem escapatória, mas constantemente à procura de uma identidade inalcançável, incapazes de saírem das raízes que os prendem na já globalizada Taipei.

A cidade aqui serve também como mostruário dos efeitos dessa integração mundial, principalmente através da poluição visual capitalista, com incessantes estímulos sempre presentes em tela — seja a televisão, outdoors, rádio, luzes ou carros –, anestesiando e fragmentando a existência na metrópole. A história contada por Yang é composta por relances de vidas comuns, que poderiam estar acontecendo atrás de qualquer porta ou dentro de qualquer carro transeunte. São enfoques tão específicos que se convertem em universais.

Os Terroristas (1986)

Em seu próximo esforço fílmico, Os Terroristas, Edward Yang continua a linha tônica ao aprofundar um tema já recorrente em sua carreira: histórias que poderiam acontecer com qualquer um em grandes metrópoles e ninguém percebe. Como em História de Taipei, a arquitetura da cidade serve como força austera e manifesta, em todas as oportunidades prendendo os personagens em seus espaços e forçando-nos a encontrar a história que se desenvolve discretamente.

Os Terroristas

Aqui, é exacerbada a universalidade da narrativa ao prestar atenção nas particularidades de cada situação. Também expande a dimensão do filme o fato de que ao invés de acompanharmos uma narrativa, são entrelaçadas diversas histórias concomitantes as quais apresentam-nos às facetas escondidas de Taipei, desde apartamentos misteriosos à becos sem saída.

O filme mistura atores e não-atores num esforço de naturalidade que verdadeiramente captura a sensação de estar presente na cidade. É palpável cada representação, ação e movimento que ocorre pelos fragmentos espaciais dispostos em Taipei. Cada personagem acaba por ser atrelado a espaços, o que funciona tanto no sentido de orientar o espectador que acompanha o filme quanto no sentido temático — as pessoas retratadas em tela têm cada uma a própria maneira de ressignificar o espaço que as circunda. Novamente vem à tona o mote da busca por identidade em meio à modernização.

As Coisas Simples da Vida (2000)

Realizando agora um salto temporal, partimos para a análise do último filme de Edward Yang: As Coisas Simples da Vida. É o filme mais conhecido do cineasta, e foi lançado no exato mesmo dia que este texto, há 21 anos. Aqui vêm à derradeira conclusão tudo em que o cineasta trabalhou, principalmente na repetição de temas e representações. Mas há algo que a maturidade cinematográfica trouxe à Yang, uma nova forma de olhar as coisas — o otimismo. Taipei que durante tanto tempo foi palco para histórias sombrias e dúbias, agora recebe a rotina de uma família normal, trazendo ordinários questionamentos sobre as inevitabilidades da vida.

A cidade em As Coisas Simples da Vida

A cidade em todos seus fragmentos é representada como um lugar também cheio de possibilidades. De fato ainda é avassaladora a presença do ideal não-identitário que assombra Taiwan, mas a busca toma um tom mais esperançoso para os personagens. A contradição entre a presença americana em todas as esquinas e a tradição familiar chinesa chega a um agridoce acordo, na maneira como a ternura que pode ser proporcionada por ambas é adicionada aos já conhecidos males.

O jeito de contar histórias através de especificidades é salientado ao máximo, o que novamente serve como meio de alcançar a universalidade. Yang pinta Taipei sempre como um produto de seu próprio tempo. Uma cidade transitória e fragmentada, onde cada pequeno espaço está sujeito à mudanças mas ao mesmo tempo nunca muda. Cada fragmento é um pequeno mundo, onde a história de uma vida inteira está sempre começando, transformando-se ou terminando. Assim como a transitoriedade do espaço, Edward Yang usa sua visão para situar esse espaço nas vidas de quem o habita — situar cada fração de ambiente na construção de uma identidade, ou na lembrança identitária do que costumava ocupá-lo.

FONTES:

Andrioli, Wallace. Taipei Story: A Metrópole, o Tempo e a Melancolia Total. Contrabando, 2020. https://www.leiacontrabando.com/taipei-story-a-metropole-o-tempo-e-a-melancolia-total/

Edward Yang, O Maestro de Taiwan. 2020. https://www.rosebud.club/post/151120.

Lai, Stan. Luminosity in the Darkness: Remembering Edward Yang. Inter-Asia Cultural Studies, Volume 9, 2008 — Issue 1. https://doi.org/10.1080/14649370701789575.

Tung, Larry Ling-hsuan. Rural and Urban Dynamics in Taiwan New Wave Cinema —

A Comparative Study of Films by Hou Hsiao-hsien and Edward Yang. Intercultural Communication Studies XVII: 2 2008, Kean University. http://www.larrytung.com/uploads/2/3/5/1/235132/urban_and_rural_taiwan_cinema_tung.pdf

Waters, James. Smoke Gets in Your Eyes: The Terrorizers (Edward Yang, 1986). CTEQ Annotations on Film, Issue 88. 2018. https://www.sensesofcinema.com/2018/cteq/smoke-gets-in-your-eyes-the-terrorizers-edward-yang-1986/.