“Se popularizou o audiovisual como meio de vida”: Anna Muylaert sobre uma realidade em vídeo e o machismo na indústria 

Foto por Gleeson Paulino

Em conversa, a diretora reflete sobre os novos tempos do audiovisual e os velhos preconceitos que ainda perseguem sua carreira

Gustavo Oliveira e Maria Eduarda dos Anjos

“Dos meus filmes, esse foi o desenhado em tintas mais fortes, com certeza”, avalia a diretora Anna Muylaert. Ela fala sobre Clube das Mulheres de Negócios, sua obra mais recente que abriu a 52ª edição do Festival de Gramado e foi agraciado com o Prêmio Especial do Júri. Longe dos jogos de poder sutis e das batalhas travadas no cotidiano tradicional da diretora, “O Clube” é concreto e esbravejante, literalmente: uma das personagens tem três onças de estimação cuja fuga é um ponto de virada decisivo do meio para o fim do longa. 

Os animais feitos por CGI roubam a atenção completamente e parecem até um pouco deslocados, tanto na trama quanto na filmografia da diretora. “Esse é meu primeiro filme que não é [principalmente guiado pelo] roteiro”, explica Anna, “Causa perplexidade, causa susto… mas acho que isso é reflexo dos anos muitos difíceis depois do golpe da Dilma… com a eleição de Bolsonaro… essa energia conturbada, complexa, até mesmo confusa, reflete esse momento da história que passamos, que de sutil não tinha nada”.

O legado dos anos pós-impeachment ultrapassa a crise política e marca, para Muylaert, o começo do monopólio dos streamings e uma verdadeira inundação da vida pelo audiovisual. “Qual lugar resta para nós, criadores de filmes, uma vez que a pessoa vive o audiovisual da manhã até à noite? Primeiro você saía de casa para ir ao cinema, depois passou para o cassete ou no DVD e aí chegou o streaming. Nisso, ainda se parava para ver uma narrativa de uma, duas horas. Com a chegada do iPhone, se popularizou cada vez mais o audiovisual como meio de vida. Hoje não é mais sobre um filme ou mesmo uma série. Isso já é um produto de luxo”. Além do tempo, o audiovisual tem cada vez menos o punho de um autor por trás das produções: os streamings têm salas de roteiro de cinco pessoas para cada projeto e que mudam o tempo todo. Isso destrói a ideia de autoria… como se o esquema do audiovisual não tivesse mais confiança em uma liderança”.

Além da história, tudo que é lançado trava uma batalha de persuasão feroz com a audiência para conseguir convencê-la a ficar para além dos primeiros minutos de contato. A disputa pela (e contra) a curta atenção do público tanto prejudica os realizadores como sabota a função de letramento audiovisual de um projeto. “Há uma tendência a fazer mais coisa, mais rápido, e isso não proporciona um letramento. A internet começa como um instrumento fabuloso de democratização da informação e termina na banalização de tudo o que consumimos.”

Foto: Aline Arruda / Divulgação

“O caso do George Floyd aconteceu por meio do audiovisual e se proliferou pela internet. O #MeToo também, que foi uma avalanche na época”, a menção ao movimento de mulheres que denunciaram seus casos de assédio na internet despertou algumas memórias do lançamento do Que Horas Ela Volta? (2015), uma época maiúscula não apenas para Anna ou para o cinema nacional, mas também para milhares de diaristas que, muitas vezes, não compreendiam ou não encontravam espaço para denunciar os abusos que enfrentavam — e que, infelizmente, muitas ainda enfrentam diariamente.

A leva de jovens que ingressou na faculdade graças aos programas sociais do governo Lula ainda tinham fresco na memória a mesma ansiedade da protagonista para prestar o vestibular, a infância longe dos pais por conta do trabalho, e o potencial de poder alcançar mais do que a família já teve, mas saber a distância daqueles que sequer tinham dúvida de que estariam ali. “Essa primeira geração da família que vai para a universidade se viu em tela; a empregada assistia, saía chorando porque entendeu que determinada situação realmente foi um abuso… O filme teve um papel historiográfico, e eu jamais imaginaria essa posição. Isso ainda me é estranho, porque apesar de eu ser reconhecida na rua, eu recebi muita violência e minha vida ficou muito mais difícil. Eu incomodava. Foi algo muito forte e inimaginável”, comenta Anna. “Eu fui um boi de piranha. Por isso muita gente gosta de mim, principalmente as mulheres. Sabem que eu fui na frente para abrir caminhos, mas não foi nada intencional e paguei caro por essa visibilidade toda”.    

Foto: Divulgação

Uma mulher que não cumpre com o jogo do patriarcado incomoda em muitos níveis. Anatomia de Uma Queda (2023) se destaca aos olhos da diretora como um dos filmes recentes que melhor sintetiza como a agressão do silenciamento ocorre de diferentes formas, repetidas vezes. “Conforme as pessoas falam sobre o filme, você consegue ver qual a posição delas [sobre o longa]. Costumava ser assim com o Que Horas Ela Volta? também”. Enquanto roteirista, ela tem vontade de explorar até onde a inveja pelo poder feminino afeta os homens. “Ao contrário do que diz o Freud, queria falar sobre a dificuldade dos homens de verem uma mulher forte, que tem voz”.  

Enquanto houver vida a se questionar, os personagens de Anna estarão lá para cutucar a ferida até que a dor traga o novo. “Eles têm essa coisa da rebeldia, de não abraçar as regras do que está posto… No Mundo da Lua, o menino criava a história dele; a Jéssica carregava uma coisa de não entrar nas crenças que são postas”. 

Se provando a criadora desses inconformados, Muylaert coloca a própria avaliação em cheque. Ela ressalta que nunca foi feito um livro que analise  sua obra enquanto conjunto e consiga desenhar esses contornos. “Outros diretores em atividade já tiveram seus roteiros publicados por editoras. Os homens são mais honrados em vida que as mulheres”. Anna afirma não ter plena consciência do impacto que gerou no cinema nacional, deixando essa análise final para jornalistas, críticos e estudiosos, mas se as próximas diretoras conseguirem inflamar metade das questões que Muylaert plantou no subconsciente brasileiro e na soleira do novíssimo cinema nacional, não haverá brecha no imaginário coletivo que não ressoe o nome de Anna.

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