Sem Coração incorpora o desejo de transformar o Brasil em fábula | 47ª Mostra

Foto: divulgação / 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

Longa-metragem de estreia de Nara Normande e Tião higieniza algumas ideias mas traz a beleza da potência de se fabular sobre o tecido social particular do Brasil

Davi Krasilchik

Existe uma dimensão onírica no ato de observar o mar. Dividido pela sua força estática e igual volatilidade, suas águas convidam um olhar de exploração de mistérios, estejam eles na decifração do mundo ou de si próprio. Orbitando a vida de uma improvável família de jovens pernambucanos, talvez sejam as águas as verdadeiras protagonistas de Sem Coração, abrigando um conto de amor banhado pela intersecção entre o real e o fabulado.

Impulsionados pelas ondas do litoral, um grupo de amigos passa os seus dias entre mergulhos e invasões de propriedades alheias, estejam elas abandonadas ou não. Destituídos de um pertencimento maior, eles dividem angústias que superam as evidentes diferenças sociais que os separam. É nesse processo que a jovem Tamara (Maya de Vicq) começa a questionar os sentimentos florescem dentro de si, nutridos por uma misteriosa figura, excluída pelos colegas, que leva como apelido o título da obra.

Apesar de impor uma narrativa clara – e que se equipara especialmente na aproximação da ida de Tamara para Brasília, onde deverá seguir a vida –, tem-se a premissa de um conto de desejos e cruezas, que constrói aquelas personas como figuras compartilhadas e representantes de uma mesma existência subjetiva. Talvez daí venha a força das simbologias que surgem do mar, propondo um paralelo entre a construção dilatada desse coletivo e a sua transmutação nesses signos.

Embora esse emparelhamento emerja de forma metódica – o que acaba comprometendo, especialmente, a estrutura do longa – as experimentações que isso permite são muito bem vindas. Esteja no sonho recorrente da baleia encalhada ou na belíssima passagem em que a textura de ruídos digitais se mistura à fluidez do líquido salgado, tudo remete ao interior, inconsciente e pulsante em cada indivíduo ali exposto. Por mais que esses inserts sejam um pouco higiênicos – parece que o filme projeta lacunas a serem didaticamente preenchidas por essas incursões fantásticas – a construção deles aprofunda bem cada um dos rostos ali inseridos.

Na direção de Nara Normande e Tião – também realizadores do curta homônimo que antecipou a preparação desse projeto –, isso ganha um teor ainda maior na elaboração da mise-en-scène. O trabalho com atores e não atores o aproxima da intersecção entre o real e o fictício, suspendendo a fábula ali arquitetada para um lugar de representação tão específico quanto universal.

A ideia é que essa abstração configure a universalidade do mundo ali construído, por mais regional que ele seja. As inquietações que perigam o limiar entre o dito e o não dito, o concreto e o figurado, tais formigamentos de disrupção física adquirem uma grande abrangência, tocando todo o corpo ali presente e flertando com o imaginário dos que o testemunham. 

Nem por isso as areias de Pernambuco deixam de abrigar figuras muito características da vida dos dois diretores, que em um debate na 47ª Mostra de São Paulo compartilharam traços das bagagens que os inspiraram. É também nessa elaboração de um drama pautado por experiências reais, críveis e não generalistas que surge um diálogo com o próprio dilema de Tamara.

Privilegiada pela classe dos pais, ela se sente deslocada com a iminente partida para Brasília, incapaz de escolher o seu próprio destino. Dessa opressão vem uma fratura pela reflexão sobre o próprio discurso, que em uma obra de complexidade social questiona a posição, apátrida, da própria protagonista confusa.

Isso está longe de dizer que a personagem não possui uma identidade dentro de nosso país ou cinema nacional, mas sim que coloca em pauta esse deslocamento. Nesse dilema surge a figura de Sem Coração (Eduarda Samara), navegadora dos mares que é vista com uma certa veneração, beirando ao medo talvez, por todas as personagens. 

Seu misticismo passa da adoração iconoclasta ao amor, convidando as duas garotas a se completarem uma na outra e acenderem pulsões que antes sequer sabiam estarem ali. É nessa faísca que o filme encontra a sua verdadeira vocação, propondo na desconstrução de seus paradigmas iconográficos e sociológicos um sentimento de difícil descrição através do visual. O título surge, não por acaso, quase como provocação, propondo a insuficiência dessas ilustrações que não podem decifrar uma gama emocional inteira, anestesiando-a de seus traços mais sentimentais.

Do mar à terra, conjurada pelas profundezas e pelo fogo de paixões irresolutas, Sem Coração até higieniza algumas ideias em sua estrutura, mas traz novas e promissoras óticas para o cinema nacional. Um cinema que mira tanto em sua especificidade quanto em sua transcendência, não poupando o desejo de se fabular sobre o Brasil.