Simbolismo, metalinguagem e contracultura: A Montanha Sagrada de Jodorowsky

Um produto singular da junção de misticismo e revolta contracultural, a obra-prima de Jodorowsky permanece uma das principais representantes do surrealismo no cinema.

Por Felipe Parlato*

Quando pensamos em grandes autores do cinema durante a contracultura, um dos principais nomes a surgir é o de Alejandro Jodorowsky. Suas duas principais obras cinematográficas, El Topo e A Montanha Sagrada, sendo esta o ponto focal deste texto, foram lançadas nos primeiros anos da década de 1970, em pleno governo Reagan e período no qual a América Latina estava tomada por regimes totalitários. E foi através de seu estilo singular, repleto de iconografias de guerra, símbolos religiosos e esoterismo que o diretor construiu obras que reverberam até hoje não só como grandes representantes do surrealismo, mas também do clima cínico do início da década.

Muitos dos fatores que colaboraram para a construção de A Montanha Sagrada podem ser encontrados na trajetória de seu realizador. Jodorowsky nasceu na aldeia de Tocopilla, no norte do Chile, filho de judeus refugiados. Na capital, Santiago, estudou filosofia e psicologia e fundou uma companhia de teatro. Insatisfeito, se mudou para Paris em 1953, onde trabalhou como diretor de teatro e estabeleceu diversas relações no meio. Em 1965 se mudou para o México, onde morou por cerca de dez anos e produziu seus três primeiros longas-metragens.

Frequentou diversos círculos surrealistas da época e, decepcionado com o conservadorismo que André Breton adquirira com a popularização do movimento, Jodorowsky funda com seus amigos Roland Topor e Fernando Arrabal o Panique movement, que tinha a intenção de abraçar o espírito de rebelião, incorporando elementos da época como ficção científica, quadrinhos e rock ’n’ roll, mesmo que não buscasse estabelecer nenhum tipo de unidade estilística para as obras.

Depois da polêmica de Fando Y Lis (1968), sobretudo no próprio México, e do impacto do western El Topo (1970), muita expectativa estava sendo colocada no próximo filme do “mestre”. O projeto acabou por ser parcialmente financiado por John Lennon e Yoko Ono, além do empresário Allen Klein, que trabalhava com os Rolling Stones, membros dos Beatles e já havia distribuído o filme anterior do diretor.

A Montanha Sagrada foi lançado em 1973 inspirado no romance inacabado Le Mont Analogue, de René Daumal e no poema Subida del Monte Carmelo, de Juan de la Cruz. Em passagens repletas de simbologia e relações com o tarot, seguimos o personagem do Ladrão (Horacio Salinas) conforme ele descobre suas origens animalescas e toma contato com o lado mais cru do mundo junto seu amigo, um anão sem braços ou pernas — uma marca do surrealismo.

Mais adiante, no topo de uma torre, a personagem encontra O Alquimista, interpretado pelo próprio Jodorowsky, junto a uma mulher com diversos símbolos religiosos tatuados pelo corpo. Após uma exótica cerimônia alquímica para fabricar ouro, o mestre espiritual apresenta ao Ladrão oito das pessoas mais poderosas do sistema solar, industriais que, junto a ele, serão liderados em direção à Montanha Sagrada, onde substituirão os deuses antigos que ali residem, alcançando a imortalidade.

Os trechos do filme que mais se relacionam com o espírito de rebelião do Panique movement são os trechos que apresentam cada planeta. No trecho inicial, protagonizado pelo Ladrão, passamos por um cenário ditatorial, supostamente na Terra, onde vemos reimaginações surreais e brutais de passagens da Bíblia e uma reencenação da colonização da América, onde camaleões são astecas e sapos são europeus. Soldados e civis dançam juntos como iguais perante a violência das guerras, estudantes são executados e, em meio a tudo isso, turistas americanos passeiam tranquilamente, fotografando e sorrindo.

As embarcações de Colombo chegam na América, momentos antes do massacre de nativos.

Em Marte, onde se fabricam armas, personagens homossexuais sofrem constante violência. Em Saturno, fabricam-se brinquedos com o propósito de manipular as crianças: de maneira semelhante ao que de fato era feito com quadrinhos, é feita uma HQ com o propósito de incitar a violência, numa passagem desconcertante.

Cada cena de apresentação dos planetas começa com o despertar das personagens em foco. A seguir, somos convidados a passear por uma grande engrenagem em funcionamento, com as problemáticas próprias de cada lugar sendo evidenciadas ao extremo de forma quase banal. Ao colocar tais problemáticas como algo rotineiro àquelas personagens, mostra-se a necessidade apontada pelo alquimista não de ações pontuais, mas sim de uma verdadeira elevação espiritual de cada um dos 9 viajantes. Para isso, reunidos em uma mesa redonda, os industriais queimam todo seu dinheiro e, tendo deixado para trás os bens materiais em seus respectivos planetas, estão livres para iniciar sua jornada.

Quando o objetivo é aparentemente alcançado, a personagem do Ladrão — representada pela carta d’O Louco no tarot — é instruída a seguir seu rumo, retornando à torre para dar continuidade ao papel do alquimista. Aos industriais, destina-se a descobrir tudo se tratar de uma farsa: os deuses na verdade são bonecos e, mais surpreendente ainda, uma abertura de planos mostra a equipe de filmagem. Num salto metalinguístico, as oito figuras são transferidas, junto ao espectador, para realidade, o verdadeiro etéreo. Tudo não passava de um filme.

*Sobre o autor: Felipe Parlato é estudante de jornalismo na Faculdade Cásper Líbero. Busca nas artes perspectivas sobre quem nós somos, de onde viemos, e para onde vamos. E também se divertir um pouco, por que não?

Referências:

Church, David. “Great Directors: Alejandro Jodorowsky”. Senses of Cinema: Great Directors, nº 42, fevereiro de 2007.

http://www.sensesofcinema.com/2007/great-directors/jodorowsky/

Faixa de comentários Alejandro Jodorowsky do BluRay de A Montanha Sagrada, lançado pela ABKCO.

Ribeiro, Ana Carolina. “Apontamentos sobre o onírico em ‘A Montanha Sagrada’, de Alejandro Jodorowsky”. Encontro Nacional de Pesquisa em Comunicação e Imagem — ENCOI, 24 e 25 de novembro de 2014, Londrina, PR

Siegel, Jules. “Alejandro Jodorowsky: Um mito do cinema esotérico”. Show Magazine, p. 20–29, dezembro de 1973. Traduzido do inglês por Luiz Carlos Oliveira Jr., disponível em: https://www.fanzinebrasil.com.br/2015/05/alejandro-jodorowsky-um-mito-do-cinema.html