Com o seu filme Sonhos, Kurosawa mostra que também é capaz de adotar uma ótica surrealista para compor sua obra, presenteando o espectador com narrativas que vieram diretamente do seu inconsciente.
Por Juliana Hipólito*
Para Carl Jung, pai da Psicologia Analítica e antigo parceiro do psicanalista Sigmund Freud, a arte por si só é uma atividade do inconsciente. Isso se conecta muito com o nascimento da vanguarda artística surrealista, que veio a se utilizar do cinema, em meados do século XX, para expor narrativas não lineares, inconclusivas e exageradamente metafóricas (ou até que prezem pela ausência de sentido), pois o cerne do movimento era a transposição do onírico da mente para as telas.
Akira Kurosawa (1910–1998), famoso cineasta japonês cujos filmes, segundo o mesmo, se orientam pela questão “Por que as pessoas não podem ser felizes juntas?”, tem em sua cinematografia alguns elementos de linguagem característicos. Dentre eles podem ser citados: o enfoque nos diversos movimentos típicos da natureza (pois, como é citado em seus próprios filmes, é a coisa mais pura que nós humanos temos), o movimento teatralizado e acentuado dos personagens, os movimentos de câmera (como o pan, que consiste em mover somente a câmera da esquerda para a direita e vice-versa), uso de slow motions para enfatizar cenas dramáticas, etc. Todos esses artifícios estéticos que compõem a sua obra podem ser verificados no seu filme Sonhos (1990).
O longa, baseado em 8 sonhos que o próprio Kurosawa teve ao longo da vida, traz consigo histórias curtas que não se preocupam com a construção clássica de narrativas, submetendo o espectador a uma experiência verdadeiramente onírica e surreal, com ambientes, construções e participantes ora visual, sonora e moralmente agradáveis, ora desesperadores e hostis.
Trazendo para o centro do debate a psicologia junguiana para racionalizar a compreensão dos fatos e da mise-en-scène de Sonhos, é necessário entender, primeiramente, o que é esse fenômeno para Jung. Segundo ele, o sonho é um produto espontâneo e natural da inconsciência, e a dificuldade para entendê-lo deriva da linguagem metafórica utilizada.
No segundo episódio, “Pomar de Pessegueiros”, a versão mirim de Kurosawa avista uma menina, que aparece unicamente para ele, e termina por guiá-lo até um morro. Lá, o menino se depara com um grupo de kamis, que, para a tradição xintó, são espíritos “divinos” superiores aos espíritos humanos. Eles condenam o mini-Kurosawa de ter deixado sua família destruir o pomar de pêssegos que ficava em seu quintal, interrompendo uma festividade para homenagear os kamis. Após um diálogo entre o garoto e o Imperador, é realizada uma celebração para que aquele veja, pela última vez, o pomar. A menina torna a aparecer, mas segundos depois desaparece, juntamente com todos os demais kamis. Em suma, há muitas interpretações que dizem que esse episódio é dedicado a uma irmã falecida do cineasta, Chi-ne-chan.
Há, no Japão, uma coleção de contos sobre uma “mulher resistente” relacionados a um sentimento de tristeza. Poderia ser considerada, segundo a psicologia junguiana, um arquétipo, que são padrões mentais e comportamentais que podem ser observados nos indivíduos. A morte de Chi-ne-chan deixa para Kurosawa um rastro de tristeza, tal qual a desilusão de não encontrar mais a menina que o conduziu a uma alegre experiência.
No quarto episódio, “O Túnel”, Kurosawa se depara, antes de atravessar a construção homônima do conto, com um cachorro antitanque (tem consigo duas granadas presas) que rosna para ele e tem sua imagem construída para parecer amedrontador. O protagonista segue, guiado pela “luz no fim do túnel”, uma iluminação fria, azulada. Após algum tempo sai do mesmo túnel o soldado Noguchi, um homem que morreu em seus braços quando Kurosawa era o comandante do Terceiro Pelotão. O soldado não acredita inicialmente que está morto, mas o comandante o convence e ele vai embora. Em seguida, o pelotão inteiro marcha em direção ao protagonista, se colocando à sua disposição, momento em que o comandante diz se arrepender de tê-los mandado para a morte, apesar de seu sofrimento por estar vivo em meio ao caos ser tão terrível quanto. Eles marcham túnel adentro, e a última coisa que vem de lá é o cachorro.
No Japão há uma crença em relação aos espíritos de pessoas mortas por afogamento, naufrágios e outros tipos de fatalidades marinhas: acredita-se que eles voltam a bordo de navios-fantasma. É possível fazer uma correlação entre a marinha e a infantaria do exército nesse episódio, quase como um credo popular arraigado no inconsciente coletivo de Akira Kurosawa.
Outro ponto que pode ser comentado é a simbologia do cachorro, uma vez que é um animal munido que persegue o comandante a todo momento. Possivelmente falamos sobre uma analogia a Cérbero, o cão de três cabeças que fica no inferno e impede que os vivos entrem no reino de Hades, assim como, na narrativa oriental, o representante de Kurosawa não deveria ter ultrapassado aquele túnel.
É possível, ainda, falar sobre um dos episódios de Sonhos de uma perspectiva mais artística. É o caso de Corvos, história na qual o alter ego onírico de Kurosawa (“Eu”) se encontra com Van Gogh (interpretado por Martin Scorsese). Essa passagem, além de uma rápida visualização na biografia de ambos os artistas, revelam que há muito em comum entre o diretor e o pintor, como por exemplo o fato de ambos terem sido postos como loucos em algum momento da vida, seguido, por alguma razão, de uma tentativa de suicídio. Além disso, é uma belíssima homenagem que o cineasta japonês faz ao seu idolatrado pintor, escolhendo, por exemplo, realizar a gravação do filme numa paisagem similar às dos quadros de Van Gogh, ou mesmo quanto à reconstrução cuidadosa de algumas obras que aparecem no longa. É uma representação idealizada e acolhedora, como quando o protagonista pergunta ao pintor o que aconteceu com sua orelha, ao que prontamente este responde “Ontem, eu estava tentando completar um autorretrato. Não consegui acertar a orelha, então a cortei e joguei fora”.
Após um desencontro das duas personagens, “Eu” transita por paisagens inicialmente monocromáticas, mas que depois viram uma explosão de cores. Por fim, ele avista Van Gogh novamente no que é a retratação da obra “Campo de Trigo com Corvos”. Embora o animal seja, na cultura ocidental, um sinônimo de mau agouro (como perpetuado pela literatura de Poe, por exemplo), para a cultura oriental ele é um símbolo divino de amor e família.
Sonhos é uma das obras-primas de Akira Kurosawa. Seja pela emoção de um menino chorando por não ter mais seu precioso pomar de pêssegos, seja pela marcante história de mortos-vivos que não sobreviveram à Segunda Guerra Mundial, seja pela beleza em homenagear um ídolo da forma mais carinhosa possível, seja pelo fato de que há ainda mais o que se apreciar para além da própria narrativa visual, sonora e escrita. Assim como ocorre com outras obras surrealistas, a vontade de interpretar o que nos está sendo contado impera, mas é necessário atentar para duas coisas: não analisar uma obra oriental com um olhar ocidental, e, além disso, relembrar que outras interpretações (ou a ausência de uma) são tão válidas quanto para admirar este longa-metragem. No final das contas, é mais sobre ser guiado pelo frenesi de episódios riquíssimos em conteúdo e construções imagéticas igualmente estonteantes.
*Sobre o autor: Juliana Hipólito é estudante de Cinema e Audiovisual pela ESPM. No que tange ao cinema, gosta de fazer análises semióticas e pensar na sétima arte como a linguagem artística mais poderosa, pois abarca um potencial de articulação de massas e de disseminação de soft power.
Referências bibliográficas:
SÁ, José Felipe Rodriguez de. “Vi um Sonho Assim”: os Sonhos de Kurosawa interpretados pela Psicologia Analítica. Instituto Junguiano da Bahia, Bahia, 2012.
VEIGA, Rosângela. UMA CONVERSA ENTRE TELAS: O Imaginário de Vincent van Gogh no Cinema de Akira Kurosawa. Porto Alegre, 2013.
Like Stories of Old. A Filosofia Humanística de Akira Kurosawa | 24 min.