Sobre Meninos e Lobos: a morte como elemento desestabilizante

Por Luiz Afonso Morêda

Subúrbio estadunidense. Casas típicas. Paredes de tijolos marrons, carros. É um universo pacífico que, no entanto, se conhecemos o diretor do filme, sabemos que está prestes a ser desestabilizado. Três crianças brincam na rua, escrevem seus nomes num espaço de cimento ainda molhado. Um carro para, um homem desce, diz ser policial. Repreende os meninos, e ordena que um deles entre no veículo. O menino, inseguro, obedece o adulto. Quando entra no carro, vemos outra pessoa dentro, um idoso, vestido de preto, portando um anel com uma cruz.

A primeira sequência de Sobre Meninos e Lobos, tal como descrita, é formada por imagens, fragmentos, que compõem e evidenciam uma frontalidade cênica, tão cara ao cinema de Clint Eastwood. É um filme (como, aliás, a maioria dos feitos por esse realizador) que se propõe a desmascarar uma realidade velada e intrínseca a um tipo de comunidade muito específica. E, todavia, isso já nos é dado na primeira sequência — o subúrbio é caracterizado, as crianças, o rapto, o suposto padre: é um filme frontal. E não só ele assume seus temas logo de início, como assume também a própria frontalidade: a primeira sequência, antes da elipse temporal que cobre mais ou menos uns 30 anos, é ela mesma repleta de elipses, o diretor já no início nos revela o seu apreço por esse mecanismo que tanto potencializa as emoções das cenas. Os efeitos de fade ao mesmo tempo que omitem momentos, paradoxalmente intensificam os não omitidos, são uma forma de condensar o tempo e de intensificar as emoções: depois de um evento trágico, nada nos atinge tanto quanto as imagens.

O incidente da primeira sequência, leia-se o rapto e o abuso do personagem do Tim Robbins quando criança, permanece ao longo da obra. Os efeitos causados por esse evento nas personagens jamais se dissipam. Um pouco depois no filme, temos um segundo evento chave, igualmente trágico: a morte de Katie (Emmy Rossum), filha de Jimmy (Sean Penn). Há uma diferença central entre esses dois eventos essenciais: o primeiro, direcionado a Dave (Robbins), foi algo perturbador, que não poderia jamais ser esquecido pela vítima e que moldou a pessoa que ela se tornou. O segundo, por outro lado, é a morte. A vítima não é perturbada pelo ocorrido, mas antes desintegrada, ela evapora, deixando de existir materialmente dentro do filme. A questão é que o filme é frontal, a diegese é marcada por uma encenação que preza pela frontalidade acima de tudo, e sendo assim, arrancar dele (do filme) uma pessoa, privar ele da materialidade de uma de suas personagens, só poderia ter consequências penosas. A morte é um elemento que traz o caos, que desestabiliza o mundo de Sobre Meninos e Lobos.

A ausência de tela parece ser, organicamente, algo intolerável para a diegese do filme. Depois que Katie morre, as personagens se tornam exaltadas, as atuações passam a ser exageradas (em contraste com o clima mais solene da primeira sequência). Enquanto pessoas, elas se revoltam porque alguma coisa maior que elas retirou de suas vidas, de seu mundo, uma pessoa querida. Enquanto personagens de ficção, elas se revoltam porque o realizador, que lhes dá tanto espaço, retirou uma de suas companheiras de tela.

Há algumas coisas recorrentes que são sempre observadas nas obras de Eastwood: revelação de verdades ocultas do cotidiano estadunidense, o embate moral de um indivíduo ressentido, geralmente interpretado pelo próprio diretor, a religião — não é por acaso que molestador do início porta um anel com uma cruz, o lugar sobre o qual Eastwood nos fala, e é sempre esse mesmo lugar, um traço de autor, é, em essência, cristão. São temas, e poderia-se argumentar que são frutos de criação dos roteiristas, antes que do diretor. Da mesma forma que poderia-se creditar a complexidade da personagem da Laura Linney ao roteiro, antes da encenação e do trabalho da própria atriz. Contudo, e espero não estar caindo em redundância, é um traço autoral de um diretor de cinema, principalmente quando de prestígio e quando também produtor, a escolha dos roteiros que decide trabalhar. Esses eventos, esses temas “do roteiro” só existem mediante a representação que recebem em tela, trabalho da direção. Mas se nos filmes em que o próprio Eastwood atua, seja como principal ou coadjuvante, a cena é de alguma forma roubada pela sua presença, algo que parece inevitável, aqui, apesar do personagem do Kevin Bacon ser uma nova versão dos personagens interpretados por Eastwood, a ausência do diretor em tela torna a obra ainda mais cristalina, o drama ainda mais intenso; em suma, revela a destreza de seu realizador.

Parece consensual que o cinema de Clint Eastwood é de veias clássicas. Tem-se uma história, a qual o cineasta se propõe a narrar de maneira tradicional: tudo meticulosamente construído, planos e contraplanos por toda parte, tramas fechadas, uma câmera onisciente que, salvo os momentos ocultados por motivos de suspense, tudo nos mostra. De fato, chega a ser assustadora a linha tênue que parece separar a decupagem dos filmes de Eastwood de algo estritamente convencional. Mas essa é a chave: a intenção parece ser a de fazer tudo de forma “básica”, quase banal, com o intuito de que nada chame atenção por si só, a mis-en-scène é transparente. Uma concepção de cinema que preza por contar histórias sem que se sinta a presença do narrador; afinal, a forma convencional de se fazer cinema, mas poucas pessoas a entendem tão bem quanto este realizador. O resultado é que o drama irá surgir dos eventos da trama, do que ocorre com os personagens antes de qualquer coisa, da simples representação emerge a poesia. É um traço que de certa forma o assemelha ao cinema de Nicholas Ray, sobre o qual Jacques Rivette nos anos 50 já observava que a riqueza emergia justamente dessa falta de recurso, de um simplismo cênico sobre o qual a poesia cinematográfica se fazia sentida (“…[um cinema] em que tudo é sacrificado pela expressão, pela eficácia, pela nitidez de um reflexo ou de um olhar.”)

Essa simplicidade, em Eastwood, parece antes de tudo uma escolha estética, ao invés de imposição material. Ora, quem, portando um orçamento de muitos milhões de dólares, iria optar por fazer um filme, à primeira vista, morno, com aparência até certo ponto comum? Certamente ninguém dessa leva de megalomaníacos que dominam e assolam o cinema de hoje: pessoas que direcionam suas energias e recursos para lentes diferentes, películas e planos difíceis de serem filmados. Não é preciso citar nomes. O cineasta nonagenário, seguindo outra linha, preza pelo simples, pelo cinema. Planos, encenação e (por que não?) mis-en-scène. Se Sobre Meninos e Lobos comporta uma série de clichês formais, é antes de tudo porque é do interesse do cineasta que seu filme se pareça com tantos outros, se encaixe numa leva de produções do momento, seja discreto, ao mesmo tempo em que é arrebatador da sua própria maneira. É o espírito contrabandista que compartilha com outros cineastas hollywoodianos, como Paul Verhoeven, cujos filmes também se infiltram no meio de uma massa de produção, mas que, ao contrário de Clint, tem muita pompa (ainda que seja uma pompa às avessas).

Mas voltando para a morte, a morte de Katie. De certa forma, esse evento, levando em conta a estrutura do filme, pode ser visto como apenas mais um acontecimento trágico, como algo necessário ao filme para que o cineasta possa trabalhar certas ideias — se levarmos em conta a veia de melodrama que a obra tem, sobretudo pensando numa moral cósmica, num destino improvável que conduz os acontecimentos, a morte de Katie é uma fatalidade como qualquer outra, apenas um pano de fundo passível de substituição. Por outro lado, e é fascinante como uma encenação tão tradicional é tão rica, a morte é um evento específico, que não poderia ser diferente: ela mexe nas entranhas do filme, o obriga a se reorganizar, provoca uma expansão — não à toa, ela acontece logo no começo, e sabemos muito mais detalhes da trama após essa ocorrência do que antes dela. Uma vez que se tem uma encenação simples, no sentido de poucos artifícios e exuberância, fica-se apenas com as personagens e suas histórias. Eis o segredo do cinema narrativo. E uma vez que tem-se apenas as personagens e suas histórias, que nossa atenção não é distraída com planos ditos incríveis e trilhas exibicionistas, a morte é o ápice da trama. Ela é, assim, um acontecimento essencial ao filme, pois essencial à vida das personagens — aqui, seres comuns e por isso, essencialmente conservadores, moradores do mesmo bairro a vida inteira, que se relacionam com o espaço que vivem, gravam seus nomes no asfalto, confiam uns aos outros seus segredos mais profundos, tudo isso dentro de uma sociedade irônica, contraditória e inescapável. Clint Eastwood é um poeta.