Feminino Trespassado: Política da morte em Chantal Akerman e Sandra Lahire

Assombradas pela existência como mulher, artistas como Chantal Akerman e Sylvia Plath viveram na arte a morte prematura que viriam a ter.

Por Carolina Azevedo*

Dying

Is an art, like everything else.

I do it exceptionally well.

Sylvia Plath (1932–1963)

De Sylvia Plath a Chantal Akerman, voltando a Virginia Woolf e chegando a Sandra Lahire, são muitos os femininos da arte trespassados pelas dores da existência como tal. Uma existência inevitavelmente atrelada à condição de ser mulher, mesmo àquelas que optaram por negar o rótulo.

Muito da obra de mulheres do século XX para cá trata das dores de viver a experiência feminina. Sylvia Plath, em sua Lady Lazarus e Esther Greenwood, vê a morte como escape de uma realidade tomada pela etiqueta, rejeição e infamiliaridade. A sociedade lhe extrai algo que mesmo a arte acaba incapaz de devolver: política de sofrimento engendrada por uma realidade em que o corpo feminino nada mais é do que um peso em carne e osso.

The peanut-crunching crowd

Shoves in to see

Them unwrap me hand and foot — —

The big strip tease.

Assim como tantas de nós, Sandra Lahire se viu assombrada pela obra da autora americana, pelas palavras sombrias e voz aparentemente intocável de suas leituras. Ela também via seu corpo violado pela política que tira de mulheres o direito de viver e morrer como bem quiserem, lutando para finalmente “interferir nos milênios de homens falantes.”

Em seus filmes, a diretora mostrou o feminino, com imagens que transitam entre o “ser” e o “se tornar” para além de abstrações do debate psicanalítico masculino. No trabalho, na arte e no seu próprio corpo, ela procurou perturbar a política de propriedade sobre o feminino e colocar si mesma, em especial sua própria saúde mental, no primeiro plano.

Em sua Trilogia Nuclear, Lahire ilustra a negligência do homem industrial frente à mulher, nova forma de mão de obra descartável. Em analogia à destrutiva indústria extrativista nuclear, a diretora mostra os efeitos do trabalho operário nas usinas sobre trabalhadoras alienadas, que viam seus corpos violados pela conspiração cancerígena mascarada por chefes e governantes.

É também no trabalho que Chantal Akerman encontrou a morte do feminino, mas não no trabalho braçal das operárias de Lahire ou na paisagem pessoal de Sylvia Plath, mas no mundano esforço doméstico que há tantas décadas assombra e aprisiona o feminino. Seu primeiro filme já anunciava a temática recorrente em sua obra e o futuro desolador da própria diretora. “Saute ma Ville” mostra uma Chantal de 18 anos freneticamente realizando tarefas domésticas em sua cozinha apertada, palco de seu suicídio menos de 15 minutos depois.

Em gestos do dia a dia da mulher, confinada ao emblemático espaço da dona de casa, Akerman literalmente explode o “universo feminino”, subvertendo o papel de gênero depositado sobre a mulher desde o início de sua vida. O curta é um boicote da dona de casa, retornando apenas alguns anos depois na forma de Jeanne Dielman, que nos mesmos gestos decide acabar com o opressor antes de si mesma.

Mas o espírito de vingança dificilmente fala mais alto que a desesperança. Assim como Plath, Chantal Akerman tirou sua própria vida após anos de sofrimento. Tal qual suas personagens, ela sempre se sentiu fora de lugar, em ambientes que pareciam sempre se tornarem insuportáveis, mas sem perder de vista seu único ponto de retorno: sua mãe.

Sandra Lahire lembra, em seu artigo intitulado “Lesbians in Media Education”, que a mãe é o princípio, figura transformada pela sociedade em depósito fácil de ódio reprimido e repressão. “A influência da mãe é tão primária quanto um hieróglifo. Estamos pensando em duas mulheres imaginando juntas, lábios falando juntos, talvez em conflito mas criando um discurso em, sobre e para si mesmo, não incorporado em certo esquema psicanalítico de construção de feminilidade.”

Chantal Akerman foi, em vida, muito próxima da mãe, se suicidando apenas meses depois de sua morte. Em seu livro de memórias, “Ma Mére Rit”, e seu último filme, “No Home Movie”, a diretora explora a relação entre mãe e filha que perpassou toda sua obra, notadamente em “News from Home”. Sobrevivente do holocausto e marcada pela barbárie e sofrimento, Nathalia Akerman também foi consumida por uma política de morte, que seria representada por Chantal em sua obra e viria a acabar com sua própria vida. “Muitas vezes eu quis me matar. Mas disse a mim mesma que não poderia fazer isso com a minha mãe.”

Essas artistas e outras souberam manifestar o sombrio e conflitante cenário psicológico e político em que se constrói a morte do feminino. Seria leviano dizer que foram apenas as experiências femininas que as levaram aos fins trágicos que cada uma teve, mas é certo, observando suas obras, que há para elas uma ética e política instituída pela sociedade a favor do sofrimento em vida de mulheres como elas. Chantal Akerman e Sandra Lahire viajaram nos terrenos da morte que destinaram suas ruínas prematuras. Elas morreram na arte, e o fizeram excepcionalmente bem.

Você assiste aos filmes de Sandra Lahire e lê análises sobre sua vida e obra no programa da Another Gaze, “A Moving X-Ray: Seven Films by Sandra Lahire”.

Referências:

DAVIES, Jon; Every Home a Heartache: Chantal Akerman; C Magazine, Issue 30, Summer 2016

LABARGE, Emily; “We say the same thing in different ways”: On Sandra Lahire and Sylvia Plath; A moving X-ray SEVEN FILMS BY SANDRA LAHIRE, Another Gaze

FRODON, Jean-Michel; Chantal Akerman: la mort avait toujours été là; Slate France, 6 octobre 2015

Sobre a autora: Carolina Azevedo é estudante de Jornalismo na Faculdade Cásper Líbero e editora-chefe da Revista Vertovina. Tem como principal interesse o cinema feminista e a arte como forma de subversão de mitos de uma sociedade pautada em histórias de sexismo.