Tateando as pulsões que restam da existência, o filme de Pedro Geraldo encontra a transcendência ao representar aquilo que não pode desaparecer
Davi Krasilchik
Ao vagar pelos corredores de sua faculdade em uma tarde comum, Sofia encontra diversas formas de reafirmar a própria existência. Ela trabalha como tatuadora nos intervalos da USP e deixa marcas, histórias e toques por onde passa. Lembranças de uma experiência passada a perseguem e levantam uma série de incertezas.
Embora a trama de Sofia Foi (2023) possa ser assim descrita, o filme é muito menos sobre a observação de uma rotina do que a respeito da subjetivação dessa presença, geradora de uma infinidade de resquícios. O projeto se manifesta nos sentidos e evoca uma reminiscência para além dos enquadramentos, supondo o entorno por uma aura que não está ali de maneira objetiva.
Enquanto atriz e personagem, Sofia Tomic entrelaça a própria vida com a ficção, vagando em um eterno trânsito. O filme lhe permite inserir ações de seu cotidiano como passagens de progressão narrativa, caso das sequências ambientadas na universidade, seja na realização das tatuagens ou na cena que registra uma festa, por exemplo. Isso traz uma condição bastante íntima ao projeto, co-escrito entre protagonista e diretore, Pedro Geraldo.
Os realizadores têm, no filme, uma plataforma de evasão de questões internas, dando contornos a uma atmosfera que sugere a chegada – ou no caso, a partida – de algo inevitável, ameaçando a permanência da personagem que acompanhamos. Planos longos brincam com nossa expectativa de preenchimento pelas personagens, zoom ins tentam encontrar figuras que os ocupem, e essa dualidade entre o que está e o que se esvai permeia toda a duração.
Nesse mesmo viés, pode se pensar sobre a forma como as dissincronias sonoras se esgueiram para o além do plano. Cabe ao espectador unificar a banda visual e sonora, e no processo, mesmo inconsciente, contribuímos ativamente para a sobrevida de Sofia. Ela está, esteve e estará naquelas imagens, ungida por esse estado de trânsito para além do espaço-tempo.
Exemplos disso se encontram, também, nos enquadramentos de valorização das pulsões. É curioso como a intimidade dessas filmagens – em sua maioria muito fechadas, valorizando o tato e as texturas – pessoalizam uma construção muito subjetivada. Essa personagem espectro ganha uma dimensão muito palpável, e essas escolhas permitem que a iconografia do filme infira todo um universo de experiências e sensações.
O coração esculpido em madeira, o fluir das águas de um lago ou mesmo a travessia de Sofia por um longo corredor, entrando e saindo, são ferramentas de valorização dos rastros deixados pela personagem. Existe uma expectativa por suas aparições, e isso induz quem assiste a preencher o que não se vê. Esses signos inferem um intercâmbio entre o arcabouço daquela personagem e o coletivo, dissecando a própria relação do filme com a imagem e revelando essa lógica de subversão da finitude.
Saindo um pouco desse estado dúbio entre a vida e o desaparecimento, o filme resgata questões como a sexualidade, discutindo esse traço da essência humana na maneira como impulsos dignos do plano de encerramento da obra irrompem da estrutura geral da narrativa.
A trama é constantemente atravessada por essa lógica de extrapolação dos sentidos, deslocados através de um jogo entre a câmera, o espaço, e aquilo que permanece – o extracampo vem como fundamento para a ambientação, inserindo pausas para o processamento do ritmo bastante próprio e permitindo uma sobreposição entre diversos momentos temporais vivenciados por Sofia.
Caminhando rumo a sua evasão, Sofia se transmuta em vestígios de uma existência, se metamorfoseando em um sentimento reprimido que ultrapassa qualquer barreira temporal ou imagética. Desse modo, Sofia Foi traz uma jornada transcendental que reforça o quão intrínsecas são as relações entre sujeitos, imagens e impulsos. É o alinhamento irracional entre essas três frentes que subverte a finitude, tornando imortal aquilo que vivemos.