Vendo e revendo A Rainha Diaba: uma entrevista com Antonio Carlos da Fontoura

A Rainha Diaba (divulgação/Cinelimite)

O diretor fala com a Vertovina sobre a realização, a digitalização e as novas leituras que A Rainha Diaba oferece ao público, 50 anos depois de seu lançamento

Carolina Azevedo 

No ano de lançamento de A Rainha Diaba (1974), Antonio Carlos da Fontoura chamou seu segundo filme de um “thriller pop-gay-black”. A descrição certamente assustou quem o conheceu através de seu primeiro longa-metragem, Copacabana me engana (1968), protagonizado pela burguesia carioca. Dos grandes apartamentos da zona sul, Fontoura segue em direção à Lapa, onde encontra a Rainha Diaba de Milton Gonçalves e constrói seu épico sobre a disputa pelo poder no tráfico de drogas do Rio de Janeiro. O visual de Hélio Oiticica, a fotografia de José Medeiros e as participações de Odete Lara, Nelson Xavier e Stepan Nercessian anunciam a mitologia estética do que Jairo Ferreiro chamaria de “mosaico requintado sobre a sujeira” de A Rainha Diaba

Blaxploitation e cinema queer à brasileira, não é à toa que o filme “mais barroco, ousado e delirante realizado no cinema brasileiro depois de Macunaíma” (Orlando L. Fassoni para a Folha de S.Paulo em 7 de setembro de 1974) continua a mobilizar paixões, cinquenta anos após seu lançamento. Nossa sorte é que uma cópia em DCP 4K de A Rainha Diaba foi criada, por iniciativa do Janela de Cinema do Recife, em parceria com a Cinelimite e o laboratório Link Digital/Mapa Filmes, a partir de negativos do Arquivo Nacional e do CTAv.

Em entrevista à Vertovina, Fontoura relata o prazer de ver seu filme “apreciado pela ótica LGBTQI+” após a exibição em festivais como os de Berlim e Melbourne. Também conta a origem do filme e de seu interesse pela estética da violência que dá o tom de A Rainha Diaba. 

A Rainha Diaba acaba de fazer 50 anos. Naquele momento, em 1974, ele tratava de questões marginais e subversivas, principalmente relacionadas à sexualidade. De onde surgiu a história do filme? Ele enfrentou censura aqui no Brasil? 

Embora tenha sido lançado em 1974, o filme A Rainha Diaba, realizado em 1973, foi concebido gradualmente desde o início dos anos 70. Originalmente, a sexualidade não era um dos tópicos do filme, meu argumento inicial, intitulado “A Guerra da Maconha”, tratava de uma quadrilha de traficantes de maconha que se exterminava até um final sangrento numa luta interna pelo poder. O elemento da sexualidade foi agregado quando Plínio Marcos, que convidei para trabalhar comigo no argumento inicial, sugeriu que a quadrilha fosse chefiada por um violento homossexual que ele havia conhecido em Santos, apelidado de A Rainha Diaba. Foi esta sugestão de Plínio que trouxe a possibilidade de agregar  à marginalidade do tráfico de maconha o elemento subversivo da sexualidade. Quanto à censura, minha impressão é que o filme confundiu os censores da ditadura, que estavam orientados para cercear filmes de subversão política explícita,  mas não levaram a sério o enfoque subversivo fora do padrão de meu filme, que passou ileso pela censura.

O filme reúne grandes nomes do cinema nacional, como Milton Gonçalves e Odete Lara em papéis, de certa forma, diferentes dos que tinham interpretado até ali. Como foi o processo de gravação?

O filme não foi gravado, na época não contávamos com este recurso.  A Rainha Diaba foi filmado em 35mm e dublado pelos integrantes do elenco, pois também não contávamos com o recurso do som direto. Para Milton Gonçalves foi uma decisão bastante consciente aceitar o convite para interpretar um personagem tão desafiador, tanto que, antes de aceitar o convite discutiu a temática do roteiro com seus familiares mais próximos, que apoiaram sua decisão de assumir o personagem. Já no caso de Odete Lara a decisão foi mais fácil, ela já havia trabalhado comigo em Copacabana me engana e sabia como eu dava espaço aos atores para trazerem suas verdades pessoais para seus personagens.

A violência é uma marca muito forte do filme. Como você explica as escolhas do tema e do tom do longa?

No início dos anos 70 as drogas e mais particularmente a maconha se tornaram uma válvula de escape para o meio artístico violentado pela ditadura.  Depois de muitos baratos e algumas bad trips, comecei a pensar no banho de sangue que estava por trás da maconha que estávamos fumando e trouxe para A Rainha Diaba esta violência.

Em 2022, nós tivemos a sorte de poder ver uma cópia restaurada desse filme fantástico. Como foi o processo de restauração?

O filme estava se tornando cult desde sua presença na Quinzaine des Réalisateurs em Cannes e no Festival de San Sebastian, além de sua expressiva performance nas salas brasileiras, mas na ocasião não encontrei meios de torná-lo mundialmente conhecido. O ponto de virada foi o convite de William Plotnick,  da Cinelimite, para incluí-lo numa mostra do cinema queer que promoveu em 2022, em Nova Iorque. Entusiasmado com o filme, William uniu-se a outro admirador da Rainha, o cineasta Kleber Mendonça, para possibilitar seu escaneamento em 4K na finalizadora Link Digital, com supervisão de Débora Butruce e remarcação de luz minha.

Nos últimos anos, a cópia restaurada rodou festivais pelo mundo. Como foi rever esse que foi seu segundo longa-metragem recebendo tamanho prestígio?

Tem sido uma experiência muito gratificante acompanhar o renascimento de A Rainha Diaba nas telas de todo o mundo, em festivais como os de Berlim e Melbourne, em salas de cinema de arte americanas, mexicanas, inglesas, europeias e agora acrescidas de Tóquio, onde o filme acabou de ser lançado comercialmente. Assisti presencialmente as três sessões do Berlinale Forum, discuti virtualmente o filme com espectadores de outras sessões mundo afora e minha sensação é que as qualidades originais do filme foram renovadas e ressignificadas pelos novos olhares dos novos espectadores deste novo tempo. De certa forma, é como se A Rainha Diaba, realizado em 1973, tenha encontrado somente agora o público para o qual foi destinado.

A Rainha Diaba continua sendo um filme importantíssimo para discutir questões políticas e sociais no Brasil. Como você acha que ele se relaciona com a atualidade?

Não fui conduzido pela intenção de discutir questões políticas do Brasil ao criar A Rainha Diaba, mas por desvendar questões marginais que, por sua sangrenta violência, emulavam a violência da ditadura contra seus opositores, o filme adquiriu um viés político que agora, na atualidade brasileira, foi ressignificado pelas questões tão atuais de identidade de gênero.

Ao longo dessa nova vida que a restauração garantiu ao filme, a mídia vem classificando-o como um grande expoente do cinema queer. Você vê o filme dessa forma? Já via quando ele foi filmado, em 74?

Nos anos 70, a palavra queer (esquisito, bizarro) era o principal xingamento homofóbico americano contra os travestis. Só a partir dos anos 80,  o termo queer começou a ser empregado de forma afirmativa e orgulhosa e pouco a pouco foi  ressignificado para a questão da liberdade sexual e identidade de gênero. Historicamente, tendo filmado A Rainha Diaba em 1973, não teria como partir desta perspectiva, mas de certa forma o enfoque libertário e subversivo do filme o tornou um precursor do cinema queer. Embora não tenha me pautado originalmente pela questão queer, fico muito feliz por A Rainha Diaba estar sendo assim apreciado pela ótica LGBTQI+.

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