O primeiro longa-metragem de Celine Song é um ótimo filme, que se perde um pouco nas sucessivas tentativas de se apresentar como tal
Felipe Palmieri
Vidas Passadas é uma obra delicada e atenta. Atenta ao que está representando, ao que quer dizer e a como tudo é realizado — uma atenção transparente e, frequentemente, exagerada. Isto é, o filme da estreante Celine Song não deixa de explicitar sua própria proposta: uma análise do amor a partir da dicotomia entre a posição que os personagens ocupam nessa narrativa, e a que eles ocupariam nesse tipo de narrativa. Essa insistência em se diferenciar, em tornar óbvia a própria poesia, vai na contramão dos pontos positivos da obra, que, felizmente, possui força suficiente para se sustentar como unidade. Não fosse esse o caso, a tentativa de reproduzir uma vida cinematográfica seria a morte de Vidas Passadas.
O filme começa com uma declaração de ponto de vista drástica. Uma cena como provocação, quase um teaser do que está por vir, na qual a audiência é radicada em uma perspectiva de 3ª pessoa na história. Três estranhos em um bar comentam sobre a situação primária de Vidas Passadas — que é inspirada por um acontecimento real na vida da diretora —, na qual uma mulher asiática está sentada em um bar entre dois homens: um branco e outro também asiático. Estes estranhos, dos quais conhecemos apenas as vozes, especulam como a audiência o faria: quem são estes homens? E esta mulher? Qual a relação entre eles? Por que estão bebendo juntos às 3h da manhã?
A câmera se aproxima do rosto da protagonista através de um zoom in, e ela quebra a quarta parede olhando diretamente para a lente. É um comportamento fabular, que se distancia de um naturalismo intencional e estabelece uma relação formal entre o distanciamento e uma maneira de agir dos personagens. No entanto, como se a aproximação artificial da lente emulasse o ato de adentrar a mente da protagonista, corta-se imediatamente para um flashback de vinte e quatro anos no passado. Entende-se: conseguiremos as respostas às perguntas especuladas através disso.
A nova perspectiva é de completa subjetividade, afinal, adentramos as memórias da personagem. Porém, nesta porção do filme começam a transparecer as primeiras contradições. É um flashback para a infância dos personagens na Coréia, no qual seguimos duas crianças, Na-Young e Hae Sung, e entendemos imediatamente que são, respectivamente, a protagonista e um dos homens sentados ao seu lado na cena inicial. Não há uma linguagem específica a este momento do filme, ou seja, a memória não é apresentada como diferente do que vem a seguir. E isso, por si só, não é um defeito, mas apenas uma escolha pela objetividade. Contudo, nada em um filme existe por si só, e essa escolha acaba se opondo à transição que acabamos de presenciar: um aprofundamento na subjetividade.
Mas há ainda uma escolha consciente pelo subjetivo, que está na maneira como os personagens agem. A relação formal anterior, entre o distanciamento e a ação irreal, é anulada pelo fato de que os personagens do flashback também agem como em um conto de fadas. É natural que a memória seja romantizada, e que os comportamentos se misturem com uma versão idealizada de si próprios, mas, quando apresentada através de uma linguagem ainda objetiva, a vida que se tenta emular acaba explicitando sua qualidade cinematográfica, em uma memória que todos agem como deveriam agir.
Isso não é uma afirmação de que é uma execução ruim, muito pelo contrário. As contradições chamam muito mais atenção justamente porque o que está em tela é muito bem realizado, carregado de emoção e intenção — o que é muito mais frustrante. A próxima fração do filme também consiste de um flashback, que encontra os mesmos personagens agora já como jovens adultos. Continua-se o conflito entre as partes formais e a narrativa, em um desbalanço entre distanciamento e proximidade. A linguagem visual permanece objetiva, divergindo da trilha sonora progressivamente mais melodramática e da narrativa ainda fabular, de um reencontro perfeito entre dois amigos de infância.
A maneira de agir dos personagens, contradizendo com a linguagem, acaba expondo os atores, aqui principalmente, pois já nos é introduzido o elenco principal (com os mesmos intérpretes da primeira cena, no tempo presente). Pois a objetividade da imagem expõe a manipulação da trilha sonora, e ambos explicitam o que não poderiam: que essas memórias, até aqui, estão nos enganando. É óbvio que essa não será a fábula tradicional do reencontro amoroso, fazendo com que a postura da atuação consista apenas em uma boa tentativa de naturalismo, pois o invólucro de mentiras chama muito mais a atenção. Resulta em uma forçação de barra vazia, que impede a poesia ali presente de ser impactante.
No entanto, na porção final tudo muda. A partir de certo ponto, finalmente se torna definitivo que não haverá uma resolução extraordinária para esse relacionamento, e que a realidade assumida é diferente. No tempo presente, Vidas Passadas deixa de tentar enganar a audiência em vão, e se entrega à potencialidade dramática ali existente. É introduzido na história o homem branco que sentava ao lado da protagonista no bar, e o conflito da cena climática se evidencia: uma mulher coreana em solo estrangeiro, sentada ao lado de seu marido branco e de sua paixão de infância coreana.
O fluir dos encontros e das relações a partir desse ponto é onde a poesia surge, não como imposição, mas como consequência. Encontra-se uma vivacidade genuína que, apesar de uma fala ou outra tentando explicar demais o filme, deixa de lado a qualidade cinematográfica dessas vidas em prol de algo sincero — que é forte não por surgir do nada, mas por conseguir se sustentar em cima de tudo que já estava ali, logo abaixo da superfície.