Ao que parece, o próprio filme é o chocolate: obra pasteurizada que tenta simular os mesmos sentimentos que o público vivenciou ao assistir aos filmes anteriores da saga, ainda na infância
Luigi Pepe
Toda obra de arte é carregada de ideologia, os filmes não são diferentes, principalmente os que se colocam como “apolíticos” ou “despretensiosos”. Nestes filmes, cada plano foi calculado para reforçar uma ideia, e essa ideia é sempre a da classe dominante. Isso não é novo, a hegemonia do pensamento sempre está ligado a quem domina os meios de produção e comunicação da indústria cultural, e esses meios serão utilizados para a manutenção e difusão dos interesses daqueles que a financiam. O novo filme do universo cinematográfico (se é que já é possível chamar assim) Wonka carrega consigo todas essas marcas ideológicas, que já se encontravam nos filmes anteriores, mas agora a chave principal não é mais a produção em si do chocolate, mas o seu consumo. Não à toa, o sonho do personagem principal, Wonka, é abrir uma loja para vender seus doces “mágicos” e só depois construir sua fábrica. O ponto basilar esconde por completo a produção da mercadoria, e ainda apresenta o seu consumo como parte fundamental da vida das personagens. Consumo que, assim como o filme, é recheado de nostalgia.
O filme inicia como uma típica história de um imigrante inocente. Wonka está em um navio, chegando à grande cidade onde tentará realizar seu sonho empreendedor de vender chocolate para todos, fazendo do mundo um lugar melhor. Logo ao chegar no centro comercial da cidade, onde a arquitetura e as roupas dos cidadãos remetem à Inglaterra industrial do século XIX, o protagonista descobre que é proibido sonhar e que os cidadãos são estressados e sorrateiros, sempre tentando tirar proveito de sua inocência. Rapidamente, ele descobre que quem manda na cidade é um grupo de três empresários magnatas da produção de chocolate, a base daquela sociedade que conecta todos os seus moradores através do consumo do doce.
Os três empresários andam sempre juntos e são o estereótipo dos ricos malvados do século XIX, sempre de terno e com nojo de pobres. Eles experimentam o chocolate de Wonka e, assustados com a excelência e unicidade do produto, decidem que ele deve desaparecer. Afinal, o novo produto irá atrapalhar o monopólio.
O doce “artesanal” de Wonka é sedutoramente irresistível e se apresenta como mercadoria perfeita, um objeto mágico que praticamente realiza os desejos de quem a consome, mudando para sempre a vida do consumidor (como é mostrado quando Noodle prova o doce pela primeira vez). O chocolate é único, composto por ingredientes capazes de gerar os mais diferentes estímulos em quem o consome, ele ele tem diferentes utilidades, fazendo quem o devora adquirir as qualidades que necessita para se superar e atingir seus objetivos, e ele é amorfo, não se trata mais de uma barra produzida em larga escala com um bilhete premiado, Wonka quase fabrica um bombom para cada indivíduo da cidade. O chocolate já não representa mais o modelo fordista dos filmes anteriores. Na realidade, a produção dele está praticamente escondida, não se vê quem o produz, exceto em uma cena onde o Wonka fabrica o chocolate como se fosse uma mágica. Ele mesmo se define como mágico.
O feitiço que envolve a mercadoria no capitalismo é capaz de ocultar por completo sua produção, fazendo com que ela surja como um passe de mágica. Além disso, ela transmite suas características para quem a utiliza. Dessa forma, o chocolate do filme é a mercadoria perfeita, capaz de esconder sua produção e de enfeitiçar seu consumidor, que não “usa” o chocolate, mas o devora. A mercadoria do mágico é tão poderosa que atrapalha a circulação de suas concorrentes e por isso deve ser aniquilada.
Seguindo o filme, Wonka se torna escravo por dívida e junto com os demais devedores do hotel, deve lavar roupas de cama de toda a cidade. A solução para sair disso é pagando a dívida, simplesmente. Não há qualquer consciência de exploração pelo trabalho escravo, os trabalhadores da lavanderia aceitam sua condição pelo simples fato de terem assinado um contrato sem ler. As personagens da lavanderia só conseguem escapar com a ajuda genial de Wonka – não é coincidência que ele seja um inventor/cientista e empresário –, que encontra na venda de sua mercadoria a forma de ganhar dinheiro para pagar as dívidas de todos. Esta mercadoria, por sua vez, é perfeita e superior às ultrapassadas dos velhos empresários, pois realiza o desejo de todos. Nem mesmo os animais escapam: o gato “feio” (magrelo, frágil e sem pelos) se transforma num gato de propaganda (grande, charmoso e peludo). Desta forma, o filme apresenta os problemas de cada cidadão como individuais e de fácil solução: basta consumir o produto certo que a vida melhora.
Tudo vai bem no mundo do consumo, até que a produção dos chocolates Wonka é sabotada pelos três magnatas e ele é deportado da cidade. O ponto interessante aqui é: os três empresários não são vilões apenas porque concentram toda a reserva de chocolates, (veja, apenas a reserva, pois como o chocolate é feito nunca é mostrado e nem citado). Eles são os antagonistas por serem gananciosos demais e não quererem dividir os consumidores com Wonka. O grande objetivo dele é se transformar em um deles, o que acaba acontecendo ao final do filme, mostrando que o problema não está na estrutura da propriedade privada que gera desigualdade, o problema está nos indivíduos que são gananciosos demais.
Após conseguir retornar do exílio e participar da descoberta de que sua amiga, Noodle, é a herdeira de todo aquele chocolate (num rebranding da história de Cinderela), Wonka finalmente consegue prender os gananciosos empresários com a ajuda da polícia – que até tem alguns policiais corruptos, mas que são casos isolados. O mágico atinge seu objetivo e, junto com Noodle, passa a monopolizar a distribuição da mercadoria. Então, literalmente em um passe de mágica, ele ergue a fábrica, sozinho. O filme não esconde seu propósito de legitimar oligopólios centrados na figura de um único indivíduo que veio do nada e ganhou o mundo por ser dotado de uma capacidade maior que a dos demais. A figura de Wonka não é diferente de Bill Gates, Elon Musk e Mark Zuckerberg.
Antes da conclusão do longa, Wonka retira do bolso um chocolate que sua mãe havia feito para ele e compartilha com seus amigos. Ele ainda diz que o sabor do chocolate o fazia voltar para a infância e que gostaria que todos sentissem o mesmo. Para além da cena parecer uma propaganda da Coca-Cola, o consumo do chocolate surge em sua forma final como um produto capaz de transportar quem o consome de volta ao passado. Ao que parece, o próprio filme é este chocolate: obra pasteurizada que tenta simular os mesmos sentimentos que o público vivenciou ao assistir aos filmes anteriores da saga, ainda na infância. Frente às complicações do mundo, o consumo é ofertado como solução às dores individuais, tanto para as personagens do filme, quanto para quem comprou o ingresso com a esperança de retornar aos tempos menos sombrios da juventude. O filme e a barra de chocolates são a mesma coisa.
Wonka centraliza as mazelas do mundo em agentes individuais e entrega como solução o consumo da mercadoria de forma consciente: “compre o chocolate das pessoas boas”. O chocolate entrega tudo aquilo que seu consumidor mais deseja e, ao final do filme, é revelado se tratar de um retorno nostálgico aos tempos da infância, assim como o próprio filme o é. “As pessoas boas” são empresários de sucesso que vieram “do nada” e com muita perseverança e originalidade conseguiram conquistar o seu lugar ao sol. O filme nada mais é do que uma propaganda ideológica das políticas neoliberais que regem o mundo em 2023. O intrincado ponto está no respaldo material que o discurso apresentado encontra. Este filme não é o único que reforça as ideias dominantes, é claro, mas é o que melhor as insere dentro de um chocolate com muito açúcar e gordura hidrogenada envolto de uma linda embalagem que diz: me consuma e os seus sonhos se tornarão realidade.