As Amargas Lágrimas de Petra Von Kant: Montagem e Perspectiva

Como Fassbinder se utiliza de quebras da lógica imagética tradicional na construção de uma obra prima

Por Felipe Palmieri*

Convenção é uma palavra que dificilmente seria atrelada ao cineasta Rainer Werner Fassbinder. O diretor alemão construiu sua prolífica carreira ao contar histórias verossímeis e instigantes, continuamente dando voz e enfoque às populações mais oprimidas na sociedade, e expondo no processo os próprios sistemas de opressão.

O verdadeiro destaque e importância atribuídos ao trabalho de Fassbinder, no entanto, não derivam apenas dos temas com os quais ele escolhia trabalhar, mas também dos métodos de abordagem cinematográfica escolhidos. A obra em questão é um exemplo notável de todas as características narrativas citadas, enquanto também é um dos mais visíveis experimentos formais do diretor: As Amargas Lágrimas de Petra Von Kant de 1972.

Desta forma, primeiramente abordando o aspecto dramatúrgico da obra — que inclusive é, além de um filme, uma peça de teatro escrita por Fassbinder — entendemos que se trata de um jogo de poder e privilégio, o qual opera entrelaçado ao sexo, na maneira que é introduzido na progressão narrativa, permeada por elipses temporais e segmentações estruturais, de maneira que cada segmento tem um ponto de virada importante e apresenta uma faceta de relevância própria no escopo geral. Outra característica significativa é que todas as personagens do filme são mulheres, refletindo um ideal que a autora Ruth Perlmutter descreve: para Fassbinder, ser uma mulher é uma condição primária tanto da vida quanto do cinema.

Quanto ao enredo do filme, acompanhamos Petra Von Kant, uma designer de moda recém divorciada e extremamente rica, que se apaixona perdidamente por Karin, uma mulher muito mais jovem e de origens mais humildes. Em meio a isso está inserida Marlene, que é a empregada e fiel escudeira de Petra — a qual é tratada de maneira praticamente escravagista pela megera — que realiza, silenciosamente, até mesmo o trabalho de designer assinado por Petra.

A jovem e trabalhadora Karin se aproveita do contato e da relação estabelecidos com a abastada mulher para aumentar o seu padrão de vida, e progredir em sua carreira. Evidencia-se que Karin está prestes a deixar Petra por meio da própria superficialidade da relação entre ambas, e quando ela finalmente o faz, a rica megera se envolve em um ciclo auto indulgente de melancolia e confissões, resultando até mesmo em uma mudança de tratamento com Marlene, passando a ser menos severa e mais gentil. No entanto, entendemos que Marlene está envolta por uma espécie de Síndrome de Estocolmo, e assim que Petra deixa sua crueldade de lado, Marlene também a abandona.

Para gerar a dinâmica sentimental conflituosa vista ao longo do filme, Fassbinder se apoia em dois pilares principais: a perspectiva e a montagem. Essa aplicação deriva do fato de que os conflitos e tensões que se acumulam na duração do longa, muito se embasam em sentimentos não expressados verbalmente, ou diretamente de qualquer forma.

Toda a apreensão é criada através de mudanças de perspectiva e de informação, tendo, no uso da montagem, um impacto maior dependendo do momento exato do corte. A tradição cinematográfica prega a montagem invisível e a fragmentação espacial cômoda — significando a literal acomodação do espectador — como linguagem universal, e como em quase todos os filmes — ainda mais de alguém que, como Fassbinder, tinha um apreço tão grande pelo cinema americano clássico — está presente, carregando menor ou maior peso.

Em Petra Von Kant, o diretor se aproveita da manipulação da informação como aspecto central da linguagem, providenciando-a aos poucos e de formas criativas. Isto é, o que está sendo apresentado para a audiência em cada momento depende da tensão que o próprio filme pede, a qual é trabalhada na alternância entre o que está ou não em tela — especialmente na variação de pontos de vista entre Petra e Marlene, focando em reações emotivas ao que acontece, ou justamente na ausência destas.

A partir disso, a dinâmica que se estrutura ao longo do filme, em cada cena, é frequentemente composta pelos seguintes passos: uma apresentação tradicional ao espaço e às ações que cada personagem estará realizando, seguida pela perspectiva predominante da personagem titular, também ainda incluída na progressão imagética clássica, a qual no entanto precede a quebra visual na inversão de perspectiva entre personagens, trazendo à tona a tensão subtextual presente em cada momento, e elaborando a dialética temática própria da obra.

O que se forma, então, são dois núcleos visuais e dramáticos concomitantes: o de Petra e o de Marlene, os quais não são necessariamente os únicos existentes no filme, mas sim os mais frequentes. Cada um destes funciona tanto em congruência com o clássico quanto desafiando-o, como exemplo disto, temos a teoria de ponto de vista narrativo descrita por Robert McKee no livro seminal Story substância, estrutura, estilo e os princípios da escrita de roteiro: “Quanto mais tempo passamos com um personagem, mais oportunidades temos de presenciar suas escolhas. O resultado é mais empatia e envolvimento emocional entre audiência e personagem”.

A questão é que Petra Von Kant definitivamente é uma personagem que recebe mais tempo de tela do que as outras, porém, na construção quase vilanesca de suas ações, cada lampejo de mudança de perspectiva cria maior envolvimento com as personagens que a circundam — e é no exercício empático que a linguagem de Fassbinder verdadeiramente se impõe.

Dessa forma, a dinâmica descrita apoia-se na tradicional justificativa acadêmica sobre as especificidades da linguagem cinematográfica, no sentido de que o discurso trabalhado pelo autor está inteiramente pautado pela informação em tela e pela montagem.

A oscilação entre planos e espaços é o que imbui de significado cada imagem, porém não é uma prática inventada por Fassbinder, mas sim algo semelhante à teoria de montagem russa, a qual é definida pelo teórico Ismail Xavier no excerto de O Discurso Cinematográfico como:

“Eisenstein se opõe ao equilíbrio e harmonia próprios a uma estética aristotélica, no fundo assumida por Kuleshov e Pudovkin. Estes também serão atacados por que em seus filmes ocorre uma progressão linear, um plano acrescentando ao outro, numa construção tijolo a tijolo, enquanto que, para Eisenstein, a perspectiva correta é produzir choques — um plano conflitando com o outro — para arrancar o espectador da ‘atitude cotidiana’.”

Logo, devemos ter em vista que estamos tratando de um autor como Fassbinder, cuja vida pessoal e profissional foi sempre regada de controvérsia e imprevisibilidade, que se utilizou de sua rebeldia para chamar atenção aos que eram escanteados pelo cinema e dramaturgia. E nada é mais lógico para um rebelde que a insubordinação formal, que o ato de “arrancar o espectador da atitude cotidiana”.

*Sobre o autor: Felipe Palmieri é estudante de Cinema na FAAP. Absolutamente fascinado por todas as pluralidades e sutilezas que a linguagem cinematográfica é capaz de abrigar, e pelas infinitas perspectivas que foram e serão materializadas através disso.

Referências:

CORRIGAN, Timothy. Transformations in Fassbinder’s The Bitter Tears of Petra von Kant. University of Pennsylvania, 2001.

HODGKISS, Rosalind. The bitter tears of Fassbinder’s women. The Guardian, 1999. Disponível em:<https://www.theguardian.com/film/1999/jan/08/features3>.

PERLMUTTER, Ruth. Real Feelings, Hollywood Melodrama and The Bitter Tears of Fassbinder’s Petra Von Kant. Minnesota Review, Duke University Press, 1989.

SEGERS, Karel F. G. POV: McKee’s View. The Story Department, 2007. Disponível em: <https://www.thestorydepartment.com/pov-mckee/>.

XAVIER, Ismail. O Discurso Cinematográfico — A opacidade e a transparência. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1984