Hipocrisia Moral Americana Entre As Botas de Látex de Cruising

Depois de The Exorcist, William Friedkin ilustra uma comunidade marginalizada pelas instituições americanas no meio dos frenéticos anos 80.

Por Pedro Vidal

Com o assassinato brutal de Sharon Tate pela Família Manson em 1969, a cultura americana dos anos 70 foi marcada pelos reflexos do fim do sonho hippie. O Estado norte-americano estava mais desmoralizado do que nunca e via-se isolado com o avanço dos movimentos contraculturais — como a Revolução Sexual e as manifestações em Stonewall. Casos como Watergate escandalizaram a sociedade conservadora e a Guerra do Vietnã só agravava cada vez mais a banalização do mal e a revolta popular. O flower power começava a perder força e a contracultura procurava outros meios de se manifestar.

Nesse cenário, emerge a subversão e o pessimismo cultural. As ruas e becos sujos de Nova York são o palco de uma série de novas subculturas, como o punk e a new-wave. Assim como as salas de cinema, cheias de thrillers alucinantes e filmes de terror metafóricos. É nesse contexto que William Friedkin inicia as gravações de Cruising, de 1980.

O filme é um thriller — baseado parcialmente em uma reportagem ensaística de Gerald Walker — que acompanha a investigação de uma série de assassinatos na comunidade gay. Conforme o personagem de Al Pacino — um policial que ambiciona por uma alavancada profissional na instituição — adentra em um submundo de crimes e de uma vida libertina, sua moralidade é colocada em jogo.

Entre botas escuras e roupas de látex, como retiradas de uma música do Velvet Underground, o personagem de Al Pacino transita nos bares escuros e clubes da marginalizada comunidade gay do final dos anos 70, no fim da era disco. Encarnando a postura digna de “bom cidadão americano”, Al Pacino é exposto pelo próprio Estado a uma realidade completamente distinta da sua em prol de um moralismo decadente. Pois, ao mesmo tempo que a polícia representa uma instituição social conservadora que preza pelos “bons costumes” absolutamente contrária à cultura gay, ela obriga o personagem a se aprofundar nesse ambiente condenado pelo conformismo americano. Vide o título do filme, Cruising, que pode ser tanto interpretado como policiais em patrulha, um símbolo de ordem, quanto a busca por sexo.

Cruising coloca em evidência a questão do quanto o Estado pode se servir do corpo de um indivíduo, quase entrando em um dilema de possessão, não é a toa que Friedkin dirigiu The Exorcist alguns anos antes. A angústia expressada pelo personagem de Al Pacino, que vê sua identidade abalada pela investigação, é evidente quando o filme chega em um momento de ambiguidade: ele continua a investigação apenas pela ambição dentro da instituição ou pela necessidade de aprovação? Isso fica evidente na cena em que ele está à beira de prantos no metrô, de frente pro delegado, mas segura o choro e aceita continuar procurando o assassino. No fim das contas, essa questão entra na própria causa dos assassinatos: o serial killer matava pois necessitava da aprovação do pai morto, um homofóbico conservador.

Aqui, é importante ressaltar um parênteses: o filme foi acusado pela comunidade gay da época de homofobia, tendo sofrido diversos problemas durante a sua produção. O argumento do protesto era que o filme representava essa minoria como um todo, de forma monstruosa, anormal e até mesmo sombria. Porém, existe uma discussão válida de que o que Friedkin propõe com Cruising é oferecer um recorte de uma das diversas subculturas existentes na comunidade homossexual. Em entrevista, Al Pacino disse que os bares gay retratados no filme são apenas um fragmento dessa comunidade.

Dessa forma, a leitura que Cruising oferece é mostrar o porquê dessa minoria ser assassinada e colocada à margem da sociedade. O serial killer em Cruising é uma extensão da violência impregnada na sociedade norte-americana contra essas pessoas, especificamente a instituição policial mostrada no filme. Aqui, os homens que um dia foram os símbolos da lei e do Estado, submetem um indivíduo à “vida depravada” violentamente combatida por eles, o ápice da hipocrisia moral americana.

Referências:

https://authors.library.caltech.edu/14868/1/HumsWP-0044.pdf

http://www.filmcritic.com.au/reviews/c/cruising.html

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