Morte e erotismo em “O Império do Desejo”

Bataille já previa a relação entre morte, erotismo e transcendência, algo que Reichenbach explora quase sem querer no clássico “Império do Desejo”

Por Carolina Azevedo*

“Do erotismo, é possível dizer que ele é a aprovação da vida até na morte.” Para o filósofo francês Georges Bataille, nós seres humanos vivemos em descontinuidade um com o outro. Isto é, haveria um abismo entre uma pessoa e outra que só poderia ser superado através do erotismo, da reprodução, da morte ou da violência. De forma ou de outra, o filme de 1980 de Carlos Reichenbach, “O Império do Desejo” parece falar um pouco de tudo isso misturando o formato comercial das pornochanchadas com a politicagem de Godard.

O filme foi feito sob todo o modo de produção da Boca do Lixo, reunindo baixo custo e erotismo em uma obra que mistura política, sexo e, é claro, produção de Roberto Galante. Com isso tudo, “O Império do Desejo” retrata a ambiguidade do momento em que foi concebido, misturando o conservadorismo burguês com a hipocrisia hippie do amor livre e da violência. O filme parece uma paródia de tudo e todos que viviam no Brasil na década de 1970, referenciando a arte e cultura de um país indefinido.

A narrativa segue a história de Sandra, uma viúva que foi à pequena casa de praia que herdou de seu marido para conhecer o local e garantir que grileiros não continuem no local. Ela tem ao seu lado o conservador e caricato advogado Carvalho e conhece um casal de hippies que acolhe como companheiros e caseiros, além do seu noivo, Odilon, homem bruto cujos estudos Sandra sustenta.

É fácil caracterizar cada um como um estereótipo da sociedade brasileira daquele momento, mas a narrativa parece fugir de toda essa construção da forma mais selvagem possível. Os personagens parecem distantes a todo momento, e ainda assim interconectados por dois elementos sentimentais em comum entre todos, a pulsão pelo sexo e pela violência.

Assim como os outros filmes da Boca, este tem como temática primeira o erótico, a única forma de transgressão que a ditadura parecia deixar passar com mais facilidade. Mas o que difere ele de tantos outros é que os personagens não são meros instrumentos de uma narrativa qualquer, de forma ou de outra, todos menos o casal de hippies desprendidos da sociedade morrem ao final da trama.

Dentro dessa temática mais ampla, Reichenbach explora os diversos aspectos da transgressão política dentro daquela sociedade, começando pela questão da propriedade. Abrindo um capítulo com a célebre frase do anarquista francês Proudhon, o diretor pensa brevemente na transgressão do “direito” à propriedade. Grileiros violentos ocupam a casa herdada por Sandra, defendendo essa ideia de que “a propriedade é roubo”, enquanto o advogado Carvalho luta pela pequena casa.

A segunda trasgressão diz respeito à cultura, a contracultura, o sexo, a poesia. O casal, Nick e Lucinha, optam por uma vida de libertinagem, odeiam trabalhar e só pensam em transar onde quer que estejam, tudo o que o pai de família dr. Carvalho aparentemente mais depressa, algo que atrai Sandra. Além disso, um terceiro personagem dá corpo a tudo isso que representa a margem dos padrões de vida e estética daquela sociedade: o Louco de Orlando Parolini.

O homem que veste branco e vive em uma barraca na praia, sem falar com ninguém e assustar aqueles que passam perto. Carvalho descreve ele em certo ponto:

“Esse louco já foi cheio da nota, alto executivo. De um momento para outro começou a usar o dinheiro pra ficar pobre, tem cabimento? Tudo por causa das malditas leituras. Cultura, isso é coisa pra viado. Virou poeta, perdeu tudo. Já foi suicida, ladrão, padre, pederasta, porra-louca, cigano, falsário, ventríloquo, negro, índio, e até operário”

Na poesia o louco teria perdido tudo, lá onde Bataille descobriu a morte e o erotismo, a continuidade.

“A poesia conduz ao mesmo ponto que cada forma do erotismo, a indistinção, a confusão dos objetos distintos. Ela nos conduz à eternidade, nos conduz à morte e, pela morte, à continuidade: a poesia é a eternidade. É o mar partido com o sol.”

Assim, o personagem de Parolini representa tudo de uma vez só: é a violência e a morte, o assassino silencioso, é o erotismo, a libertinagem, o marginal, o político, o profeta, o louco. A violência propositada do homem contra os outros personagens serve como alegoria à antidemocracia mas também como simples canalizador de continuidade, complemento ao erotismo, transgressão. Assim como desenhou Oiticica, cantou Caetano ou filmou Bressane, o personagem representa a violência pela violência, a morte como transgressão.

Mas antes de tudo isso vem o erotismo. “O Império do Desejo” é prova de libertinagem, sexualidade orgânica, dinâmica de liberdade e conexão com o outro, todos os outros. É colocar lado a lado feminismo e estupro, desejo e repressão, é sexo como política, como transgressão da ordem opressora, simples movimento de corpos e supressão do desejo animal. “O Império do Desejo” é violência erótica como ciência, é discurso comunista misturado com prazer, pequena e grande morte. É o último suspiro de prazer, desistir da família e viver à margem, política marginal.

Referências:

BATAILLE, Georges. O erotismo. São Paulo : Arx, 2004.

BELLO, Bruno. VIOLÊNCIA E PUNIÇÃO NO FILME IMPÉRIO DO DESEJO (CARLOS REICHENBACH, 1981). Revista TEL, Irati, v. 11, n.2, p. 198–213, jul./dez. 2020.

Sobre a autora: Carolina Azevedo é estudante de Jornalismo na Faculdade Cásper Líbero e editora-chefe da Revista Vertovina. Tem como principal interesse o cinema, sobretudo quando a arte se transforma em meio de mudança social, grito dos silenciados e resistência.