Claire Denis, cineasta sensorial

Por Luiz Afonso Morêda*

A tendência do cinema de fluxo marcou os anos 90 e começo dos 2000, ganhando destaque por fazer algo essencialmente simples, que vem da gênese do cinema: resgatar o sensorial. Para esses realizadores, os filmes não são mais fruto de uma formalismo classicista, plano por plano, como fora para tantos ao longo da história, mas sim um fluxo, espontâneo, de planos que se sucedem quase por acaso. Concepções de ritmo, narrativa e forma, são postas em cheque por essas pessoas que resgatam o fascínio pela matéria do mundo como só ocorria nos primórdios.

A cineasta francesa Claire Denis ocupa uma posição ambivalente nesse contexto, pois ao mesmo tempo que seus filmes parecem ser guiados pela mesma ideia que guia o cinema de fluxo, ela difere dos seus contemporâneos numa questão basilar: a sua concepção de cinema. (Importante ressaltar que a noção de cinema de fluxo trabalhada aqui é relativamente simplista, baseada num mapa de referências traçado por apenas um pesquisador, e abarcar a fundo numa dissecação do termo não é o meu objetivo).

Sendo assim, o sensorial no fluxo é um princípio fundador, a câmera deixa de ser racional e objetiva, priorizando um desenvolvimento dramático clássico e passa a ser espontânea, guiada por um sentimento. Em Denis, esse caráter sensorial, sensual, opera como impulso criador. Há um interesse pelo carnal, pela relação dos corpos, pelas energias que os cercam, pela matéria mas também pela vida que anima essa matéria. Dito isso, é sintomático que ela esteja inserida no contexto do cinema de fluxo. Em certo sentido, ela é o cinema de fluxo.

Mas o que chama atenção é que ela estabelece uma relação com o real diferente de seus contemporâneos. Enquanto para maioria deles o cinema é um meio para algo maior, a transcendência vem dessa forma transparente que simula o real — em alguns quase perde-se a fronteira entre ficção e realidade — , em Claire Denis a realidade do filme é muito bem demarcada, muito estilizada, o mundo fora dele quase não é aludido. A transcendência provém não de uma aproximação com o real, de um fluxo de vida mais realista propagado pela matéria mas, pelo contrário, da estilização da própria matéria filmada.

Então ela se aproxima do fluxo por conter essa energia sensorial tão característica do momento, mas se distancia, na medida em que sua câmera se faz sentida, em que a ilusão de realidade não é um objetivo. Seu olhar é de uma perspectiva mais moderna, muito bem delineado e presente — as fusões suntuosas entre os planos e a câmera sedenta por estilização não nos deixam esquecer, como ocorre no cinema de fluxo de forma geral, que aquilo se trata de um filme. Em suma, no cinema de fluxo a ideia é se aproximar cada vez mais da realidade, da duração e aparência real das coisas, em Claire Denis não.

Em Bom Trabalho (1999), seu filme mais célebre (o quarto filme mais novo na lista de cem melhores da revista britânica Sight and Sound, uma das mais conhecidas do mundo), ela filma corpos. São militares de uma divisão especial do Exército Francês composta por estrangeiros que estão numa ocupação em Djibouti, e passam seus dias treinando, fortalecendo seus músculos. São corpos atléticos, monumentais, gregos, que são apreendidos pela câmera de Denis (aqui vale a ressaltar a fundamental contribuição da fotógrafa Agnes Godard, responsável por tornar possíveis as imagens da maioria dos filmes da realizadora francesa).

Esses corpos são vistos no deserto, em conjunto com a natureza, por vezes enquadrados em magníficos Contra-Plongées diante do céu, e é a ação deles, a presença dessas matérias no espaço, que o filme acompanha. A linha narrativa é dispersa e tênue, propositalmente fragmentada e embaçada, e o que nos resta são imagens, que por sua vez são hiper estilizadas e por isso passam a sensação de que aqueles seres não existem em lugar nenhum a não ser dentro do filme.

A transcendência nesse caso não vem como num filme de Abbas Kiarostami, um dos maiores expoentes do cinema de fluxo, da aproximação com o real, da mistura de realidade com ficção, do olhar ingênuo e contemplativo de um mundo assignificante. Em Claire Denis, ela vem da estilização da matéria filmada, do ato de colocar algo em cena e a forma com que isso será filmado é que contém, talvez, um caráter transcendental. Ela se aproxima, nesse sentido, de cineastas do período clássico hollywoodiano como Alfred Hitchcock e Douglas Sirk, ao buscar filmar um mundo estilizado e torcer a matéria visível em busca de revelar algo maior — ainda que nesses dois talvez o cinema fosse meio e não fim, como é em Denis, mas essa é uma separação ambígua demais e é possível ser as duas coisas ao mesmo tempo.

O sensorial nesse caso existe dentro da tela (os homens que correm, gritam, pulam no meio da natureza), mas também na atitude que o filme exige do espectador. É preciso contemplar as imagens, de maneira passiva, não racional: apenas sentir — é isso que o filme pede para nós. Essa colaboração é necessária para que a apoteose da cena final seja sentida. A ebulição, explosão, subversão do corpo que é, nota-se, observada por uma câmera presente, tão presente que de maneira retroativa chega quase a ser documental — o que, talvez pela primeira vez no filme todo, passa a impressão de que aquele corpo existiu, o filme ao fim alude a um mundo fora dele.

Essa carga sensual é algo presente provavelmente em todos os trabalhos de Claire Denis. Na maioria das vezes de maneira explícita, como em Bom Trabalho, Desejo e Obsessão (2001) ou Sexta-feira à Noite (2002), mas nos seus trabalhos mais recentes, quiçá por razões mais realistas, a proposta é mais comercial. Tem-se um filme como Deixe a Luz do Sol Entrar (2017), em que Juliette Binoche interpreta uma artista parisiense divorciada em busca de um amor, e no qual a decupagem deixa de ser irruptiva e passa a ser convencional, e um outro como High Life (2018), em que Robert Pattinson interpreta um preso enviado numa missão espacial.

Em ambos, principalmente no Deixe a Luz do Sol Entrar, a câmera, outrora vagarosa, sedenta por estilização, agora é clássica, mais transparente. O filme é composto de ações e a estilização ocorre nos limites do razoável (aqui é importante ressaltar a ausência de Agnès Godard nesses dois filmes). Mesmo assim, parece haver, movendo a protagonista, uma energia, um desejo. O sensorial existe um pouco menos na forma, mas continua presente, em grande intensidade, naquele universo. Ou seja, mesmo restrita por convenções, Claire Denis nunca abre mão de certas coisas.

Em High Life a proposta é um pouco menos distante da de outros filmes da cineasta, diga-se de passagem a decupagem, a fotografia e a montagem, que propõem não só uma estilização como uma desorientação espaço-temporal. Mas, apesar de algumas convenções de gênero estarem presente e fazerem até um desserviço ao filme, o que importa aqui é o sensual, mais uma vez presente, retratado na trama (o desejo), na desorientação formal e na fluidez dramática.

Dá para dizer então que, a despeito de tudo, algumas coisas nunca abandonaram a realizadora francesa. O filme, para ela, parece ser uma construção, um olhar direcionado, e esse olhar é, obrigatoriamente, sensual. É um cinema ambivalente por ser tão próximo e tão distante do contexto em que está inserido, sem de forma alguma soar contraditório, até porque, afinal, arte é sobre seguir caminhos ainda não traçados — a prevalência do sensorial, a reconexão com os instintos.

Sobre o autor: Luiz Afonso Morêda é estudante de cinema na FAAP. Artista em constante formação, busca escrever sobre cinema para colocar pra fora aquilo que aprendeu depois de alguns anos estudando jornalismo.

Referências:

A mise en scène no cinema: Do clássico ao cinema de fluxo, Luiz Carlos Oliveira Jr — Papirus, 2013

https://www.bfi.org.uk/sight-and-sound/greatest-films-all-time

https://cultureinjection.wordpress.com/2017/11/26/olivier-joyard-que-plano-e-esse-a-continuacao-junho-de-2003/#:~:text=Ela%20correspondia%20historicamente%20ao%20esgotamento,base%20do%20cinema%20estavam%20ligadas.

Bom Trabalho (1999)

Desejo e Obsessão (2001)

Sexta-feira à Noite (2002)

Deixe a Luz do Sol Entrar (2017)

High Life (2018)