À deriva, sempre à procura

Por Davi Krasilchik*

Mais do que a busca eterna pela conexão com o outro, há de se reconhecer que o florescer de uma paixão tateia uma urgência pelo auto-conhecimento. Universal e batido, mas nem por isso menos encantador, é esse o sentimento que impulsiona “Deserto Particular”, longa que pode representar o Brasil no Oscar de 2022.

Dirigido por um apaixonado Aly Muritiba, conforme confidências feitas ao portal “Ingresso.com”, o longa acompanha a trajetória do policial Daniel (Antonio Saboia), um homem dividido entre a vida profissional e os cuidados fornecidos ao pai com Alzheimer. Quando um violento episódio o afasta de sua profissão e todas as suas relações parecem ser insuficientes, ele resolve deixar tudo para trás e procurar a possível mulher de seus sonhos: Sara, uma moça que subitamente para de lhe responder.

Caracterizada pelo silêncio, conforme coroam as poéticas palavras do protagonista na sequência de abertura — não por acaso entregues por uma narração em voz “off”, incapazes de coexistir no campo visual -, o primeiro segmento da atração constrói com delicadeza a crueza que sufoca o protagonista.

Desde a corrida do primeiro plano, que filmada frontalmente demonstra a incapacidade de Daniel em realmente avançar, passando pela priorização de registros mais abertos — que intensificam a perdição ao dificultar a aproximação entre espectador e personagens -, até uma direção guiada pelos elementos mais reais da misé-en-scene — e não se utilizando de fugas proporcionadas por trilhas não diegéticas ou demais liberdades cinematográficas -, tudo nos primeiros minutos parece bastante sórdido.

Uma vez iniciada a “road trip”, entretanto, é encantadora a maneira como a produção passa a crescer em cor e significado, se deixando flertar com prazeres do cinema que, mesmo artificiais, nunca minimizam a verdade por detrás das facetas ali representadas.

Exemplo disso é a deliciosa sequência ambientada em um bar ao som de “Total Eclipse of The Heart”, momento que, se em um primeiro momento se apresenta como descaradamente melodramático, encontra em alguns dos discursos do filme a sua grande funcionalidade.

Ao encontrar como cerne a contraposição entre naturezas supostamente distintas, viés que se torna mais claro principalmente após a introdução do brilhante Pedro Fasanaro, Muritiba investe na desconstrução de revestimentos artificiais. Para além da massificada construção que encontramos nos dias de hoje, entretanto, é cativante a maneira como ele problematiza a adição de camadas não verdadeiras socialmente enraizada.

Seja pelos efeitos da intolerância, em decorrência da naturalização de esteriótipos — conforme o momento em que o pai de Daniel, acometido pela demência, parece retroceder, munido de seu antigo uniforme militar como forma de resistir -, ou simplesmente, pelo medo da auto-aceitação, é como se o falso e o verdadeiro se tornassem sincrônicos.

As cenas que se utilizam magistralmente da profundidade de campo traduzem essa sobreposição de camadas, contraponto duas perspectivas — em um protagonismo praticamente duplo — bastante distintos em um processo surpreendentemente rumo à fusão.

Tal como o diálogo ambientado no belissimo plano que encapsula uma represa — de maneira que a disposição das duas personas na tela quase dividem essa mesma, um canto iluminado pelas águas represadas e o outro escurecido pelo mecânico toque humano — a obra incorpora ainda um discurso de oposição à tentativa de controle sobre a natureza.

Mais do que o meio que nos permeia, todavia, tal fator diz respeito a nossos perfis internos, que mesmo orbitados por estímulos que nos inspirem a ser quem somos, nítidos em nossas almas, nem sempre conseguem superar o engessar de nossos relacionamentos

Desse modo, o longa é um singela carta de amor à necessidade de persistimos na busca por paixões. Mais do que isso, todavia, é um cativante exercício de conexão para com a vida, que nos alerta para a importância de se ater a símbolos que, por mais melodramáticos que pareçam, tal como a canção de Cindy Lauper, nos relembram da necessidade de persistimos em nossas buscas pessoais.