A anarquia e a subversão como formas de maximizar a narrativa nos filmes surrealistas de Terayama e Matsumoto.
Por Matheus Fortunato*
O surrealismo no cinema sempre esteve presente em diversos países pelo mundo e com inúmeros autores que buscaram abordar o movimento das mais diferentes formas. Na França com Germaine Dulac, Man Ray, René Clair e Luis Buñuel; ou na Suécia com Ingmar Bergman, ou na República Checa com Jan Švankmajer, ou no Estados Unidos com David Lynch e até mesmo no Japão com Nobuhiko Obayashi. O Surrealismo japonês foi mais um dos influenciados pelo surrealismo francês, e desta maneira, a partir da desordem e subversão, Shuji Terayama e Toshio Matsumoto maximizam as percepções subjetivas e espaciais em seus universos cinematográficos.
ANARQUIA E TUMULTO COMO PONTO DE PARTIDA PARA A CONSTRUÇÃO SURREAL EM JOGUE SEUS LIVROS, VAMOS ÀS RUAS
O filme Throw Away Your Books, Rally in the Streets (1971) ou, em português, “Joguem Seus Livros, Vamos às Ruas’’ é uma das três obras de mesmo título (Sho o suteyo, machi e deyo) que Terayama produziu. A primeira foi uma peça, a segunda foi um livro e a terceira obra sendo a mais conhecida foi o longa de 1971. Hideaki Sasaki é membro de uma família disfuncional onde seu pai é um viciado em apostas e pervertido sexual, sua irmã tem uma relação no mínimo ambígua com seu coelho e sua avó é uma ladra e possui uma personalidade totalmente egoísta e mentirosa. Não o bastante, o personagem de Hideaki passa por trauma atrás de trauma no decorrer do filme e muitos desses acontecem na busca do protagonista por uma identidade para si.
Há momentos em que Hideaki até se vê como culpado de certas situações do filme, e, em um deles, passa até a se portar de maneira protetora com sua irmã, após um momento traumático para ele e, principalmente, para ela. A relação de Hideaki com a sua irmã é uma das poucas coisas realmente saudáveis que o personagem tem para se sentir bem, mas assim como tudo em torno do personagem, aquela relação se evapora logo depois.
Hideaki é um garoto cheio de feridas, tem fobia social, sofreu traumas na infância e as consequências disso o permeiam até hoje, sobretudo quando ele é forçado a “virar homem”, termo que um personagem do filme utiliza para tentar forçar Hideaki a lidar com a própria sexualidade. É difícil acreditar que uma pessoa repleta de traumas, fobias, inseguranças e sem qualquer afeto ou unidade familiar possa ser capaz de lidar com isso.
O protagonista sonha em voar, sonha em ir para longe daquele ambiente caótico que o cerca, Hideaki busca algum conforto, por isso que em momentos ele almeja que o pai volte a trabalhar e o peso pare de recair sobre suas costas. Hideaki está fadado a ficar preso às amarras dos laços familiares disfuncionais, a impossibilidade de conforto ou fuga para longe desse ambiente é representado de maneira metafórica na cena final.
Bebendo muito de sua fonte francesa, Terayama utiliza de recortes de textos de André Malraux, Erich Fromm e Vladimir Mayakovsky para transitar entre cenas do filme, da mesma maneira que Godard fazia em suas obras. A jornada de Hideaki o leva a momentos de profunda confusão interna que Terayama retrata de maneira onírica quase à moda lynchiana de fazer filmes. Esses momentos oníricos estão sempre contrapostos à situações onde subversão, anarquia e até atos de violação tomam conta do filme.
O longa também rejeita fortemente a ideia da crescente ocidentalização e, especialmente, da presença americana no Japão. Além da imagem acima, outro momento que deixa isso mais nítido é quando no campo de futebol aparece a seguinte frase: “Não dê liberdade aos inimigos da liberdade”. Até porque, como outro cineasta japonês discorreu diversas vezes, outros só poderão ter a liberdade de viver o seu futuro se jamais esquecermos quem ficou no passado. A maior marca da americanização japonesa é quando a avó de Hideaki se recusa a fumar cigarro japonês, em outro momento o diretor mostra cigarros “Peace” sendo queimados como uma forma de resistência.
Shuji Terayama cria um universo anárquico em Throw Away Your Books, Rally in the Streets, utilizando de citações, boxe, futebol, sequências musicais e poéticas, mas principalmente fazendo uso da subversão como elemento possibilitador para as interações entre os personagens e o seu universo caótico. A cena na qual Hideaki observa o modelo de avião sendo incendiado é uma referência direta ao sonho fracassado do protagonista. Ter a capacidade de voar parece ainda mais distante do que antes, seja pelas amarras dos laços familiares ou pela falta de identidade do personagem diante de seus demônios.
A TRANSGRESSÃO EM FUNERAL PARADE OF ROSES DE TOSHIO MATSUMOTO
O cinema de Matsumoto se assemelha bastante ao de Terayama. Se por um lado Terayama criava um ambiente caótico e totalmente dissimulado dos personagens que ali estavam presentes com sequências extremamente oníricas, Matsumoto também cria um ambiente desorientado, mas ao invés de utilizar apenas sonhos, o diretor mistura o que é narrativo e o que é documental.
O que diferencia ainda mais Funeral Parade of Roses de Throw Away Your Books, Rally in the Streets é que Matsumoto vai além. Ele trata de questões fora do cunho cinematográfico, ele confronta diretamente o espectador trazendo discussões de gênero e utilizando de muitas sequências sexuais, bem diferente da forma que Terayama utiliza em seu filme.
Os dois filmes remetem em algum nível ao Mangue-Bangue (1971) de Neville d’Almeida pela forma em que ambos buscam criar um ambiente de subversão, anarquia e transgressão em suas narrativas. Curiosamente o filme de Neville é do mesmo ano que o filme de Terayama e bem próximo do filme de Matsumoto.
Apesar de não atingirem o nível caótico de Mangue-Bangue, em uma cena de Funeral Parade of Roses, onde o filme desenvolvia o seu lado mais documental, de forma repentina se cria uma atmosfera totalmente anárquica e de insubordinação. O ambiente que Matsumoto desenvolve aqui é invejável, a dança e a música criam uma dimensão apoteótica para a cena.
De todas as cenas marcantes, a última cena é brilhante por tudo que ela representa e pela forma que Matsumoto filma. Não apenas nesse momento, mas o diretor consegue amplificar vários momentos do filme pela sua edição polvorosa e pelos seus movimentos de câmera hipnotizantes potencializando as percepções de seu espectador.
Portanto, o cinema de Shuji Terayama e Toshio Matsumoto consegue utilizar da anarquia e transgressão como elementos potencializadores para suas narrativas, desenvolvendo, assim, um brilhante e marcante cinema surrealista japonês.
Sobre o autor: Matheus Fortunato é estudante de Administração, é apaixonado por cinema experimental e arte em todas as suas formas. Interessado pela maneira com que o cinema possibilita cada pessoa poder experimentar e produzir arte de diferentes meios.
Referências:
Lessa, Larissa. Subversão e resistência no japão pós-guerra: os filmes de Terayama Shuji. Acesso em: 05 de janeiro de 2022. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8157/tde-22102018-162052/publico/2018_LarissaLessa_VCorr.pdf
Kiejziewicz, Agnieszka. From France to Japan. Migration of the surrealist ideas and its influence on Japanese avant-garde film. Acesso em: 10 de janeiro de 2022. Disponível em: https://ruj.uj.edu.pl/xmlui/bitstream/handle/item/56650/kiejziewicz_from_france_to_japan_2017.pdf?sequence=1&isAllowed=y
‘Neo-documentarism’ in Funeral Parade of Roses: the new realism of Matsumoto Toshio