A música e Sganzerla

Por Luiz Afonso Morêda

O cinema de Rogério Sganzerla foi marcado, como não podia deixar de ser, pelas imposições da realidade material em que o cineasta estava inserido. Realidade brasileira. Como ele próprio proclamava, a sua arte era uma que partia de certa precariedade técnica e material para existir. A consciência acerca das limitações, para que elas sejam não um empecilho, mas matéria prima, era, segundo ele, uma condição essencial ao fazer cinematográfico no terceiro mundo. Os filmes concretizados pelo cineasta catarinense nos mostram que, para além de preocupações latentes sobre o estado da sétima arte, sobre as implicações teóricas e práticas que ela trazia, o artista Sganzerla se preocupava, acima de tudo, com uma concepção um tanto mais holística, mais espiritual, que abarcava muitas coisas, e não apenas o cinema — “é tudo uma coisa só”, ouvimos incessantemente em seu filme Abismu, de 1977.

“Meu interesse era me envolver com cultura” disse ele sobre quando se mudou para São Paulo. Ou ainda, ao dizer, fazendo um contraponto a outros cineastas modernos, que não se interessa em falar sobre as almas sem deus, a psicologia feminina ou a incomunicabilidade: “opto pela denúncia global da alma e do corpo subdesenvolvido, isto é, do homem brasileiro”. Fica claro, portanto, e os seus filmes não mentem, que suas preocupações rompiam barreiras, ultrapassavam o próprio meio, a própria obra — estendiam-se para o todo, para a uma condição originária. A música em sua obra, seja ela diegética ou não, pode ser vista como a expressão dessa preocupação. A partir da escolha da música, de como ela é inserida no filme, do valor dado pelo cineasta a ela, Sganzerla diverge de outros realizadores, para os quais a música é apenas um elemento formal, algo que vai ser usado para um determinado fim, restrito à obra. Para ele, esse uso, digamos, utilitarista, da música também existe — a partir do momento em que ele é um artista e suas escolhas visam um efeito estético específico — , mas a relação se estende, e a música, na obra do cineasta catarinense, é como uma porta, que pode nos revelar certos fatores acerca de suas ideias.

“A música é o que pode salvar o nosso cinema, seja popular, seja de elite, todos têm um ouvido e o cinema precisa se reencontrar pra poder justificar o que ele tem de melhor que é a possibilidade de transfigurar a realidade com a força, a energia e sobretudo com a concentração espiritual que a música combinada com o cinema nos propõe, e trazer cada vez mais perto a noção do supremo”. A partir dessa declaração bastante esclarecedora, o cineasta nos situa acerca de seu entendimento sobre a música, que é reverberado na presença, ou melhor, aparição, de Luiz Gonzaga em Sem Essa, Aranha, assim como na trilha sonora de Gilberto Gil para Copacabana mon Amour, ambos filmes de 1970 — naquele período, muito bem situado na classe artística engajada com o Tropicalismo, Sganzerla começava a ruminar em direção a um cinema mais experimental, cuja essência, a experimentação, sempre diz de um diálogo com a natureza do cinema e suas especificidades. Mesmo que Luiz Gonzaga, na ocasião das filmagens do filme, já fosse um nome consagrado da música brasileira, assim como Gil já era um artista em processo de ascensão no mínimo tão grande quanto Sganzerla, a colaboração desses músicos aponta não tanto para a valorização de seus gênios individuais, reforçando uma aura mítica, mas antes para suas contribuições efervescentes na música popular brasileira. Dito de outro modo, Gonzaga e Gil, nesses filmes, figuram menos como personagens mitificados (como Sganzerla depois trataria a figura de Noel Rosa, por exemplo), e mais como colegas artistas que, no fundo, de alguma forma, lutavam pela mesma causa que este cineasta: por uma arte capaz de unir os brasileiros — de outro modo: por uma arte capaz de referenciar e resgatar formas de artes capazes de unir os brasileiros. Ou ainda, para citar um outro artista, que para mim, tratando de Sganzerla e música, é irresistível citar:

“Eu vou fazer uma embolada, um samba, um maracatu

Tudo bem envenenado, bom pra mim e bom pra tu

Pra gente sair da lama e enfrentar os urubu”

O resgate de traços tradicionais, devidamente envenenados (isto é, modernizar o passado), como uma prática artística capaz de unir, tanto em Chico Science quanto em Sganzerla. Sendo assim, seja pela antológica cena de Sem Essa, Aranha, em que Luiz Gonzaga reúne pessoas em volta da sua música inebriante, seja pela trilha ensolarada e iluminada composta por Gil exclusivamente para Copacabana mon Amour, o fato é que se trata, mesmo no caso de Gonzaga, de uma colaboração, de uma parceria de respeito mútuo entre artistas que se admiram, não tanto de uma homenagem. A música e os músicos, no contexto desses filmes e cantores, é uma forma de preencher o filme, de contagiar a cena, de emprestar ao cinema uma energia única — e portanto, serve a um efeito estético desejado pelo cineasta (penso em Sônia Silk andando por Copacabana ao som de delirante de Gil) — , mas também uma forma de celebração, de resgatar, valorizar e enfatizar a importância gloriosa da música popular brasileira que, no caso desses dois músicos (e de Chico Science), de forma análoga ao que se dá com Sganzerla em termos de cinema, decorre de uma modernidade que resgata tradições.

Mesmo em Brasil (1981), filme em que o cineasta reúne uma constelação de músicos geniais (o filme foi feito para acompanhar o álbum homônimo lançado por João Gilberto, Gilberto Gil, Caetano Veloso e Maria Bethânia), cenário que pressupõe, até por razões comerciais que devem ter motivado o filme e o LP, o ênfase nessas personalidades, o foco é outro. O cineasta se interessa muito mais por um sentido geral evocado pela música desses artistas — um sentido que aponta para o passado brasileiro, imemorial — , e expressa isso nas suas imagens, de modo a fazer com que os cantores, quando aparecem na obra, apareçam diminutos em relação à estrondosa e estonteante beleza das imagens anteriores. As músicas cantadas no disco são, e isso é fundamental ressaltar, não tanto composições originais, bossanovistas ou tropicalistas, mas antigas composições brasileiras, revitalizadas no violão de João Gilberto. Das 6 músicas do LP, duas foram escritas por Ary Barroso na década de 30; uma é um standard de jazz, também da década de 30, gravado por praticamente todos os conhecidos cantores de jazz estadunidenses, mas aqui cantada numa letra em português (!); uma outra é um samba da década de 40. Ainda constam uma música de Dorival Caymmi e uma, escrita e gravada, lá pelos anos 70, pelo grupo Os Tincoãs, que também resgataram, de certa forma, certas tradições. É neste cenário, em que músicos modernos reinventam um repertório antigo, que Sganzerla expõe a sua visão, não só de mundo mas, acima de tudo, de Brasil.

Temos então um filme sereno, de imagens enigmáticas, ainda mais levando em conta outras obras de Sganzerla — a mudança de tom e teor das imagens apontam não tanto para um filme menor ou menos “autoral”, mas para uma exceção, um filme excepcional. Estamos diante do Brasil de Sganzerla: uma visão que mescla o caráter idílico das praias e coqueiros, uma sensatez insular dos pescadores (coisas que são expressadas nas imagens avassaladoras do filme, provavelmente de arquivo, sempre a flertar com um filme institucional de propaganda), com uma presença física gritante que abriga, e não contrapõe, coisas diversas que vão de personalidades tão díspares e controversas como Orson Welles, Getúlio Vargas, ao molejo contagiante dos músicos baianos que cantam as canções que acompanham a obra; enfim, tudo é Brasil — esse que inclusive é um nome de um longa que o diretor viria a realizar 16 anos depois, sobre o qual ele chegou a dizer: “é uma pequena tentativa de voltar às nossas raízes, coisa que eu acho tão importante quanto o nosso cinema”. É tudo uma coisa só.

Se a relação dos filmes de Sganzerla com músicos como Gilberto Gil e João Gilberto apontam para uma defesa da música popular, ou de um certo tratamento sobre a música popular, como uma forma de comunhão, um ato de dar as mãos, um denominador em comum com todos os brasileiros, a relação estabelecida por ele com figuras tão aparentemente díspares como Noel Rosa e Jimi Hendrix é muito mais da ordem de uma admiração frente à personalidades inalcançáveis. Rosa por ter morrido antes de Sganzerla nascer, Hendrix por, além de também ter morrido muito cedo, estar localizado em outro hemisfério. A admiração dada pelo cineasta a esses músicos só é comparável à que é dada por ele a Orson Welles, igualmente mitificado nos filmes do realizador (foram no mínimo três direta ou indiretamente dedicados a ele). São personalidades inalcançáveis, dignas de uma aura mítica, devido, na visão de Sganzerla, entre outras coisas, à uma certa genialidade, presente em ambos os músicos, capaz de transformar, a partir de um apelo a princípio popular.

Nos filmes sobre Noel Rosa (Noel por Noel, de 1981, e Isto é Noel Rosa, de 1990), que, aliás, enfrentaram problemas para sair do papel, como um terceiro filme que o cineasta nunca conseguiu realizar, vemos vislumbres formais que muito os assemelham a documentários tradicionais. No primeiro filme, temos um voice-over ao longo de quase toda duração da fita, no segundo, um texto que corre pela tela explicando quem foi aquele personagem, logo no início da obra. Por outro lado, as imagens filmadas por Sganzerla em ambos os filmes remetem à mais singela experimentação, são facilmente discerníveis, e são dispostas numa montagem muito livre e fluida, que dá ao corpo fílmico uma contínua reinvenção, muito próxima daquela que o cineasta invejava no violão de João Gilberto e na guitarra de Jimi Hendrix. Estamos, nesse sentido, diante de um cineasta musical. O mais interessante é que, por se tratarem de filmes documentais, são obras amparadas em uma pesquisa e uma grande fonte de documentos, que inclui imagens de documentos em papel, bem como imagens de arquivo, fotografias, e exposição de fatos históricos. Os filmes que começam como sendo algo sobre um personagem muito específico da música brasileira, mostram-se, aos poucos, muito mais interessados em, através dessa figura, desbravar a cultura e a sociedade brasileira.

Em Isto é Noel Rosa, logo no início, quando vemos e ouvimos João Gilberto cantando a célebre canção do sambista, Feitiço da Vila — performance que Sganzerla disse ter sido gravada exclusivamente para o filme — , um texto aparece na tela e nos introduz quem foi essa figura enigmática: “Quem foi Noel? Noel Rosa nasceu em 1910 em Vila Isabel, na periferia do Rio de Janeiro. Graças a seus pais, conseguiu em 1930 ingressar na faculdade de medicina. Mas já era tarde. Noel queria mesmo era ser compositor.” Seria fácil demais apontar como essa introdução que o cineasta faz espelha a sua própria trajetória (Sganzerla, graças a seus pais, ingressou na faculdade de direito. Mas já era tarde, queria ser cineasta), mas não é totalmente falso. Poderia se dizer o mesmo sobre como ele se referia aos seus filmes como à frente do seu tempo, sem poupar hipérboles, da mesma forma que falava sobre Noel e Hendrix. O culto a esses artistas, junto ao culto que ele fazia de certa forma a si mesmo enquanto artista, mesmo que motivado por uma decisão incendiária de autopromoção, revela o apreço que o cineasta tinha por estes mitos, pela ideia de personalidades que, nascidas numa civilização já desenvolvida (sobre linhas tortas e por isso desconectada), poderiam através de uma jornada individual de auto-conhecimento pela arte, através quase de um processo alquímico, resgatar ideais perdidos, descobrir verdades ocultas.

O filme dirigido a Hendrix, Abismu, de 1977 (há ainda um outro, que ao que parece encontra-se perdido) expõe o pensamento de Sganzerla acerca desta visão do artista enquanto mito. Jimi Hendrix, cabe ressaltar: um guitarrista estadunidense, isto é, nascido numa sociedade degradada. O cineasta se referia a ele, assim como ao sambista da vila, como sendo à frente do seu tempo: “(eles) pretendem mudar a mente contemporânea […] criadores comparáveis não somente pela extensão de sua vida curta, gênios ceifados em plena flor da idade, mas pela quantidade e versatilidade de sua obra extensa, da capacidade de tentar e não conseguir repetir-se (ou auto parodiar-se) no verso polido ao máximo abissal e sempre ameaçador à mente convencional”. O filme é único tanto pela expansão do estilo experimental do cineasta (conta mais uma vez com Jorge Loredo no papel de profeta maldito, como em Sem Essa), quanto pela resistência que demonstra (um projeto concluído apesar das tentativas de boicote, preservado apesar do sucateamento). Acompanhado de trilha sonora do guitarrista estadunidense, ao mesmo tempo que traz imagens que expressam uma “releitura crítica do cinema hollywoodiano”, a antropofagia de Sganzerla transborda, culminando na cena que melhor expressa este caráter, a última do filme: Jimi Hendrix se despedindo do público num show, dublado, porcamente, em português.

As posturas adotadas por Sganzerla enquanto artista são, de todo modo, plenamente coerentes com as ideias que ele defendia (e plenamente dissonantes de grande parte de seus contemporâneos e posteriores), e mostram um artista afiado com o que acreditava. Encarar a música ora como uma arte superior ao cinema, ora como uma arte popular com potencial revolucionário, ora como uma instância que permite alçar artistas à condição de lendas, faz parte de um processo antropofágico, que não se preocupa com contradições. A noção, proveniente do hemisfério norte, de uma hierarquia das artes, assim como a ideia um tanto mais tradicional da arte como rito, ou do artista enquanto gênio; há espaço para tudo isso na concepção de Sganzerla.

REFERÊNCIAS:

CANUTO, Roberta (org.). Rogério Sganzerla — Encontros. — Rio de Janeiro : Beco do Azougue, 2007

NEGREIROS, Eliete: Sganzerla e o cinema como melodia. Documento eletrônico. Disponível em <https://piaui.folha.uol.com.br/sganzerla-e-o-cinema-como-melodia/>. Acesso 11 jul. 2022.

FERREIRA, Jairo: A vida de Noel Rosa, na visão de Sganzerla. Documento eletrônico.

Disponível em <http://www.contracampo.com.br/58/art_dossievidadenoel.htm>. Acesso 21 jul. 2022.