Walter Salles dirige ‘Ainda estou aqui’ com a consciência de que nossos mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer
Victor Kutz
“Eles também querem que nós também demos um depoimento”. Essa foi a frase que antecedeu os 12 dias em janeiro de 1971, quando Eunice Paiva esteve presa no Destacamento de Operações e Informações do Exército, na zona norte do Rio. Um dos muitos centros clandestinos de desaparecimento forçado, tortura e execução da ditadura militar.
A história de Eunice Paiva é o tema do novo filme de Walter Salles, baseado no romance homônimo de Marcelo Rubens Paiva, filho de Eunice, interpretada por Fernanda Torres.
No filme, acompanhamos uma rotina familiar muito particular. Trata-se da família do engenheiro e ex-deputado Rubem Braga. Rubem, Eunice e seus cinco filhos moram em um casarão de frente para a praia de Ipanema. Livros, discos, televisão, empregada e até uma filha que vai a Londres por alguns meses (em 1971) entram em cena para compor o cenário de uma família de classe alta do Rio de Janeiro.
Algo, no entanto, parece sempre dar o tom da vida extramuros daquela família. Uma cena específica (impressa no cartaz do filme) denuncia isso com mais evidência: no dia da despedida de Vera, filha mais velha do casal, para Londres, familiares e amigos estão reunidos para uma fotografia. Mas algo parece chamar a atenção de Fernanda Torres para além das lentes da Rolleiflex que registram o momento. Para onde olha Eunice Paiva? Após assistir o filme, essa foto ganha um novo significado. Eunice olha para os caminhões do exército brasileiro que passavam ao fundo. Observando o anúncio do terrível que se passará em sua vida, Eunice não sorri.
No feriado do dia 20 de janeiro de 1971, Rubens Paiva foi levado por homens armados descaracterizados, deixando Eunice e os cinco filhos enquanto se tornava um dos 434 mortos ou desaparecidos políticos reconhecidos pela Comissão Nacional da Verdade em 2014.
O filme retrata de maneira muito sensível o peso que cai sobre as costas da personagem interpretada por Fernanda Torres. Toda a incerteza, preocupação e desamparo que usualmente recai sobre as mulheres de famílias de desaparecidos políticos durante momentos históricos como este. Um aspecto dessa situação fica especialmente evidente: como Eunice tem de construir uma realidade para as crianças da família. Como forma de protegê-los, ela passa a contar para Ana, Marcelo e Maria Beatriz (e para si mesma) que os homens que estão fazendo vigília em sua casa são dedetizadores; ou que Rubens está ausente por causa de uma viagem de trabalho.
Algum tempo depois, Eunice e Eliana também são levadas. As cenas dos interrogatórios aos quais Eunice é submetida periodicamente são quase kafkianas. Um interrogador mostra um caderno para Eunice durante as sessões e pede que ela reconheça rostos familiares dentre os suspeitos de atividades subversivas. De início, ninguém é reconhecido. Mas, quando vão avançando as sessões, surgem rostos familiares: a professora da escola de suas filhas; o marido; a filha e, por fim, a própria Eunice.
Com as sessões de interrogatório, avançam também os dias. Posteriormente, descobrimos que se passaram doze. Doze dias se passaram em uma cela escura sem contato algum com a família até que a protagonista é liberada. O que permanece é a ausência duradoura do marido.
A memória é um dos grandes temas desse filme. Tanto nos registros fotográficos e em super-8 presentes no filme, como na luta por justiça de Eunice Paiva após a morte do marido (e até mesmo na doença de Alzheimer dela), a memória está sempre lá. O filme de Walter Salles parece discursar consciente da famosa frase de Walter Benjamin em Teses sobre o conceito de história, que diz que “o dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer”.
É clara a denúncia do filme à ditadura militar, mas, sobretudo, ao desaparecimento forçado: uma agressão à memória. A figura do marido se converte para Eunice em uma ausência prolongada pois, sem ter a confirmação da morte, ou o corpo de um ente querido, não se pode fazer o trabalho psicológico do enlutamento de forma adequada. No caso de Rubens Paiva, anos de sofrimento se seguiram à morte do ex-deputado para, só em 1996, o Estado emitir uma certidão de óbito, resultado de anos de luta por verdade.
O filme de Walter Salles é sóbrio. Não exagera em cenas demasiado sentimentais, nem preenchidas por simbolismos. No entanto, esse é um filme que dói. É quase impossível não se emocionar assistindo Ainda estou aqui, pois se trata de um retrato de uma ferida que permaneceu aberta por tempo demais. Se trata do sequestro de um homem, de uma memória. Se trata de estar alheio ao mundo que você pertence sem explicação.
Uma coisa que chama atenção no filme é o absoluto cuidado aos detalhes. Tudo parece ter sido arranjado por Walter Salles para que Fernanda Torres e Selton Mello parecessem extremamente naturais nos papéis de Eunice e Rubens. O exemplo que mais chama atenção a esse cuidado é o trabalho minucioso de recriação das fotografias do casal com o elenco do filme.
Esse cuidado com os elementos de época no filme também se reflete na imersiva ambientação que Walter cria. Tudo parece apontar para uma reconstrução extremamente realista do Rio da década de 1970 sem que haja os costumeiros exageros que causam ao espectador uma sensação de ridículo imenso pela falha tentativa de recriar um passado idealizado.