Viagem ao Princípio do Mundo e o fim da memória

O longa de Manoel de Oliveira existe entre o pesar e a beleza que carrega a memória de uma vida

Felipe Parlato

Inspirado por experiências reais — “eventos” não parece certo, tratando-se de algo tão intimista — Viagem ao Princípio do Mundo, de 1997, segue o trajeto de uma equipe de produção francesa pelo interior de Portugal, locação de um futuro longa-metragem. O ator principal, Afonso (Jean-Yves Gautier), nascido e criado na França, resolve aproveitar a ocasião para conhecer a terra natal de seu pai, de cuja cultura pouco sabe. O diretor do filme — um duplo do próprio Manoel de Oliveira, interpretado por Marcello Mastroianni — é da mesma geração do pai de Afonso, e busca auxiliar o jovem ator nessa busca por identidade, rememorando a própria infância e mostrando os lugares onde cresceu.

Se no início da década de 1990 Oliveira refletiu sobre a história da violência e o patriotismo cego português na obra-prima Non, ou a Vã Glória de Mandar, aqui a ideia é comentar sobre o desaparecimento de um modo de vida antigo: das pequenas aldeias, de velhos hábitos católicos, da agricultura de subsistência que mal chega a subsistir. Ainda que os dois temas se retroalimentem e sejam indissociáveis, este último assume um tom mais agridoce do que amargo; mesmo que Manoel lembre com certo remorso de certos acontecimentos de sua vida, como os anos no colégio interno, tal nostalgia áspera vem sempre acompanhada por um sentimento de pesar pelo que desapareceu com o tempo. 

Afonso não se identifica com as experiências trazidas por Manoel. O grupo, então, segue finalmente para a casa de uma tia do ator, Maria Afonso (Isabel de Castro), que ele nunca conheceu. De início confusa e desconfiada sobre a profissão do sobrinho, suas intenções, e o fato dele não saber falar português, a parente acaba por acolhê-lo, presenteá-lo com um pão caseiro e levá-lo para conhecer os túmulos da família. 

Mas não há muito o que dizer sobre o passado. Em meio a rezas, versos de Camões e antigos rituais, resta a amargura perante ao fim da nação portuguesa como foi concebida: jovens deixando as aldeias, mulheres desavergonhadas na televisão. Ainda assim, o contraponto entre a desconfiança e o respeito à unidade familiar portugueses são apresentados com humor e carinho, evidentes no misto de rancor e respeito que Maria tem em relação à decisão do irmão de fugir de casa. Da parte de Afonso, apreciação pelo que há de sagrado nos rituais religiosos e na preservação da memória da terra que foi parte de sua origem. 

No lançamento de Viagem ao Princípio do Mundo, Oliveira beirava a casa dos 90 anos de idade. Mastroianni, que o interpreta, morreria pouco depois do término das gravações, aos 72 anos (foi seu último papel no cinema). A sensação do diretor português era a de ter presenciado o decorrer de um século inteiro – o término de regime monárquico milenar, o início e o fim da mais longa ditadura da Europa moderna, a transformação do cinema como forma de arte – e continuar vivendo. 

O diretor adota uma estrutura similar a de Non, em que os momentos na estrada funcionam com interlúdios para os diversos segmentos do filme. O sentimento melancólico de um fardo a ser carregado — como cineasta e como ente querido de parentes e amigos — é materializado em um desses segmentos, cena em que o grupo observa uma estátua de um homem, João Macau, carregando um tronco de madeira sobre os ombros. Uma tarefa que parece nunca ter fim. A força do filme está justamente nesses elementos que resistem: uma árvore, uma reza, uma rima. João Macau, carregando em seus ombros as terras de Camões.

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