Anatomia de uma queda | 47ª Mostra

Imagem: Divulgação/47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

O brilho da memória pode ser igualmente enganador. O passado é um país que não emite vistos. Só podemos entrar nele ilegalmente.

Janet Malcolm, Still Pictures 

Entre imagens e gravações de áudio, Anatomia de uma queda constrói-se no que é deixado de fora. A partir do jogo entre dito e inaudito, Justine Triet filma um retrato realista da vida de uma família que se vê envolvida em um possível crime: a queda que o título evoca não é vista nem ouvida, mas as circunstâncias misteriosas em que ocorre movimentam um julgamento que coloca a escritora alemã Sandra Voyter (Sandra Hüller) como suspeita pelo assassinato de seu marido, o também escritor Samuel Maleski (Samuel Theis). 

Entre acusações que misturam misoginia e xenofobia no tribunal francês, a memória de Daniel (Milo Machado-Graner) – filho do casal, que perdeu grande parte de sua visão em um acidente – é protagonista. Como ele, o público é manipulado pelos argumentos da acusação e obrigado a ouvir detalhes da vida privada dos seus pais, entre tentativas de suicido e traições. Suas lembranças e percepções, no entanto, estão no centro do processo – literalmente, como atestam os movimentos de câmera que o colocam no meio de um círculo que se move freneticamente entre a acusação e a defesa de sua mãe. 

Essa mãe, estrangeira às montanhas dos Alpes de Grenoble e à língua em que é julgada, tem dificuldade de se aproximar do filho, que fala primordialmente o francês e passa a maior parte do tempo com o pai. No processo de tradução, as traições de Sandra geram maior inquietação no júri, que se vê no meio de uma discussão literária quando a acusação passa a utilizar trechos de livros da acusada para incriminá-la – ao que a defesa responde: “Stephen King seria então um assassino em série?”

O que muitos colocaram pejorativamente como “verborragia” é o uso máximo da circunstância para dar forma à história: como em um tribunal, o filme de Triet constrói-se em uma arena da retórica. Não é à toa que o clímax do filme é colocado pontualmente sobre a extensa conversa que o casal teve na noite anterior à morte de Samuel. A gravação – feita pelo autor frustrado em busca de inspiração na sua vida pessoal, como fazia a esposa – torna-se a única imagem do passado à qual temos acesso irrestrito, sem que tenhamos que nos apoiar sobre as memórias turvas dos dois membros restantes da família, que vive isolada em um casulo que confina a combinação explosiva entre criatividade e vida doméstica. 

O local em que a história se desenrola também desempenha papel importante na construção da narrativa de Triet: entre as montanhas cobertas de neve, o pequeno chalé onde moram e o tribunal, os lugares apertados e a luz opressiva dos Alpes montam o cenário da queda e do processo. 

Em entrevista à New Yorker, Triet aponta ter achado interessante localizar o sobe e desce do filme na região montanhosa de Grenoble, cujo relevo é usado quase como metáfora. Na mesma entrevista, ela fala sobre a forma como a luz das montanhas nevadas era, para ela, violenta, sobretudo através dos sensores das câmeras digitais, que não perdoam quando a imagem estoura, destacando o vermelho que mancha os arredores do chalé após a queda. 

Nesse conto de Joana d’Arc moderno – no que a crítica americana gosta de chamar de era pós #MeToo – uma morte é filmada da mesma maneira em que opera a memória: entre palavras que se perdem no sobe e desce do passado, imagens por vezes claras demais e por outras obscuras se formam. No fim, não há certeza alguma sobre o que aconteceu por trás das câmeras – nem mesmo a própria diretora quis revelar à atriz se sua personagem cometeu ou não o crime. Fugindo do clichê, a dúvida prova que é o processo que está sendo julgado pelo olhar de Triet.

Carolina Azevedo é editora-chefe da Revista Vertovina e repórter no Le Monde Diplomatique Brasil.