Dias Perfeitos sorri na cara da tristeza da vida moderna

Foto: divulgação/O2 play/MUBI

Filme de Wim Wenders sobre um zelador de banheiros públicos em Tóquio é um filme político disfarçado, fazendo da contemplação uma arma revolucionária

Eduardo Lima

Ouve o barulho da vassoura no concreto da rua. Acorda, antes do sol. Enrola e guarda o futon, confere a página em que parou a leitura na noite anterior e vai escovar os dentes. Ele rega as plantas e sorri para elas. Mais um dia começa para Hirayama, o limpador de banheiros e herói do novo filme de Wim Wenders, interpretado de forma magistral e silenciosa por Kōji Yakusho. Em uma estante ao lado da porta, o silencioso zelador coleta seus artefatos em ordem: a câmera analógica, as chaves de casa, as chaves da van. Ele deixa o relógio: não precisa marcar o tempo quando a rotina-ritual já faz isso por ele. Ao abrir a porta, Hirayama sorri de novo.

Wenders, diretor alemão de clássicos como Asas do Desejo e Paris, Texas, fez uma homenagem ao mestre do cinema japonês Yasujirō Ozu que não só honra o seu inspirador como virou a escolha do Japão para representar o país no Oscar. Mais que Ozu, Dias Perfeitos lembra outro intercâmbio entre Ásia e Alemanha: a obra do filósofo sul-coreano que leciona na Alemanha, Byung-Chul Han.

“As coisas tornam o tempo tangível, enquanto os rituais o tornam transitável”, escreve Han em seu livro Não-coisas. “O papel amarelado e seu cheiro me aquecem o coração. A digitalização destrói as memórias e os toques.” A vida de Hirayama, construída em cima de rituais que “transformam o estar-no-mundo em estar-em-casa […], estabilizam a vida ao estruturarem o tempo”, existe em franca oposição contra o mundo ao seu redor. “Herói”, no primeiro parágrafo, não foi ironia para se referir a um zelador de banheiros turísticos. Hirayama representa uma linha de resistência contra a tendência neoliberal de acelerar o ritmo da vida e transformar tudo em material de consumo.

No meio da trilha sonora de clássicos do rock e da fotografia gentil de Franz Lustig, valorizando o maravilhoso cenário que é Tóquio, Wenders escondeu um filme político. A vida contemplativa de Hirayama, baseada em serviço, está desde o começo do filme sendo desafiada por todos ao seu redor. Quer seja a mãe de uma criança que Hirayama ajuda a encontrar, que nem se dá ao trabalho de agradecer, ou seu colega de trabalho mais novo (“9/10 numa escala de esquisitice”, ele afirma sobre o chefe), ninguém parece entender porque alguém viveria tão feliz em pleno século XXI.

Os banheiros que Hirayama limpa todo dia são obras maravilhosas de arquitetura, design e tecnologia, coisas fascinantes que definitivamente não precisavam ser tão fascinantes assim. “Característico das coisas é o decorativo, o ornamental. Com isso, a vida insiste no fato de que ela é mais do que funcionar”, escreve Han. “Nós expulsamos o divino da vida quando o submetemos inteiramente a funções e informações.” Um banheiro público, o ápice do utilitarismo, também pode ser um monumento à beleza. Não é só uma questão de funcionalidade, porque a vida é muito mais que funcionalidade.

Além de zelador, Hirayama é um colecionador: ele tem centenas de fitas cassetes e livros usados em sua casa, não por ser um consumista (todos os livros que ele compra saem de uma seção de um dólar do sebo, e ele só compra um depois de terminar outro), mas sim por ter vínculos com essas coisas do coração. São recipientes de “sentimentos e memórias”, como o Han gosta de chamar suas possessões mais amadas.

Outro dos rituais de Hirayama, que ele tenta ensinar à sobrinha que foge de casa e o acompanha em sua rotina durante parte do filme, é o de fotografar árvores com sua câmera analógica. As fotos saem do laboratório de revelação e vão direto para caixas. Elas não servem à economia da exposição ou da utilidade: existem só pelo prazer de existir. São lembretes da passagem do tempo (“a data faz parte da fotografia […] porque nos faz pensar na vida, na morte, no inevitável desaparecimento de gerações”, afirma Roland Barthes), e também são coisas do coração. É um pequeno milagre capturar a luz das árvores por meio de um processo (al)químico já datado. Esse ritual fotográfico é um jeito de se aproximar da natureza (ele sempre agradece às árvores depois da sessão de fotos) e de sua sobrinha, que, com a câmera que ganhou do tio, deixa o celular de lado por um tempo.

O protagonista de Dias Perfeitos parece entender melhor as árvores, as coisas e os banheiros do que as outras pessoas. Como viver num mundo onde todos parecem não entender ou não valorizar seu jeito de viver? “O mundo é formado por muitos mundos”, Hirayama explica para sua sobrinha enquanto andam de bicicleta. Mas é solitário ser o último habitante de seu mundo, que parece perder espaço a cada dia que passa. Um dos poucos relacionamentos de Hirayama é uma partida anônima de jogo da velha, por meio de um papel deixado em um dos banheiros. Quem consegue parar para jogar jogo da velha hoje? Espécie em extinção.

Todo esse saudosismo, de Dias Perfeitos e do Byung-Chul Han, lamentando por um tempo passado, pode parecer reacionário. Mas outro alemão discordaria: Walter Benjamin, em suas teses sobre o conceito de história, afirma que é do passado que vem a “centelha da esperança” que vai começar a revolução. Quando olhamos para a história, enxergamos possibilidades futuras de ação. Cada livro de sebo, cada foto revelada pode apontar para um futuro onde a beleza pode coexistir com a função, e a contemplação pode ser praticada no meio de uma das maiores metrópoles do mundo.

“Uma obra de arte significa mais do que todos os significados que poderiam ser extraídos dela”, afirma Byung-Chul Han. Dias Perfeitos é um filme político, mas também pode ser assistido “só” como um filme que mostra como a vida é linda, apesar de tudo. Na vida pessoal e nas pequenas coisas do dia a dia, Hirayama vive para mostrar que vale tentar vencer as lágrimas com um sorriso. Talvez não haja nada mais político que isso.

Eduardo Lima é amante amador de cinema e repórter no Le Monde Diplomatique Brasil.

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