Pelo eixo de um melancólico laço entre pai e filho, o diretor Guto Parente coloca a criação como mediadora entre aquilo que é e aquilo que julgamos ser
Davi Krasilchik
Quando atravessamos a pandemia da COVID-19, nos vimos presos em nossas casas, muitos com nenhuma companhia a não ser a própria consciência. Forçados a observar o mundo através de portas e janelas, fomos deixados com impressões sobre os outros, retrocedendo em interações reais, compreensões reais dos que dividem a vida conosco.
Embora seja simplista reduzir a motivação de um projeto artístico, talvez Estranho Caminho (2023) surja desse lugar, colocando a arte como uma espécie de pulsão, vinda de um inconsciente atormentado pela incompreensão de certas coisas. O filme acompanha o retorno do cineasta David (Lucas Limeira) a sua cidade natal no Ceará, para apresentar o seu primeiro longa-metragem após uma década estudando fora. A iminência de um lockdown acaba cancelando a exibição e o força a permanecer por mais tempo, levando-o a tentar contato com o pai que não vê há muito tempo.
Atravessado por lapsos e visões que surgem em sua mente, é interessante observar como David utiliza o cinema como um instrumento de mediação, traduzindo questões internas em suas imagens. Isso surge como uma possível ponte, mesmo que inconscientemente, com o seu pai.
Tomado pelo ressentimento daqueles que dele se afastaram, Geraldo (Carlos Francisco) é uma figura paterna construída pelo olhar do filho. É o último que sempre conduz a interação do público com essa presença, desdobrando novos detalhes a cada tentava de reinvenção.
É nesse sentido que os ruídos, a granulação e as cores das imagens produzidas por David remetem à indefinição, a esse estado de incerteza com relação a um universo íntimo que se força a conhecer de novo. Isso determina uma série de interações que beiram ao absurdo, especialmente no modo como a direção vai suspendendo a continuidade do desenvolvimento dessas personagens.
Há um filho que tem medo de investigar o próprio pai, receio de descobrir que nada sabe sobre ele. Reflexo disso é a passagem em que David entende com o que Geraldo, escritor, se mantém tão ocupado, conforme sempre fala. Ele encontra uma série de livros de autoajuda, que entre muitos assuntos abordam a comunicação com familiares. Nasce um paralelo entre as projeções criativas dos dois, fluindo pelo espaço em uma tentativa atrapalhada de conciliação.
Surge uma espécie de sinfonia de desencontros, regida por afetos que procuram imagens, encapsulados em mentes febris, aprisionadas em si mesmas, capazes de contê-las. A forma reprimida de Geraldo elogiar o filme de David, por exemplo, revelando ter acompanhado todas as suas demais produções, ou a fricção dos experimentos do jovem diretor, revelam essas potências descarrilhadas.
Por outro lado, o filme usa menos a carga dessa dispersão para desenhar a derrocada de uma relação do que para fantasiar com a possibilidade de um encontro. Ainda que o processo liberte uma série de feridas, trancafiado pelo zoom in insistente da câmera ou pela invasão das luzes externas – ampliando cômodos que antes pareciam ser menores, tal como o jogo de marionetes entre um homem e seu gerador –, o filme sonha com esse reencontro, que surge ao final em meio a fluidez dos códigos que o trilharam.
Sobra um filme de fantasmas que, mesmo agridoce, abraça a energia solar da criação. Isso torna Estranho Caminho uma fábula sobre a importância de se sonhar com a existência. A existência de laços e conexões que transcendem as leis do tempo e adulteram a finitude da carne humana.