O fúnebre trajeto que assombra os protagonistas de Michael Mann culmina em uma negação da própria natureza da imagem em “Ferrari”(2023)
Felipe Palmieri
Enzo Ferrari com óculos de sol. Opaco, mas com vestígios de translucidez. É a imagem central da cinebiografia dirigida por Michael Mann, uma imagem de distanciamento e resguardo, como se houvesse uma barreira, que apesar das tentativas de humanização do protagonista — através do luto, da paixão ou do ódio —, nunca é de fato quebrada. Não à toa a história se passa em 1957, pois o retrato frio e indiferente é o único possível no ano da Tragedia di Guidizzolo: um acidente automobilístico que resultou na morte de 2 pilotos da Ferrari e 9 espectadores — dentre os quais, 5 crianças.
Talvez possa-se explicar o ímpeto de representar tal momento pela frase atribuída a Jean Cocteau por Walter Lima Jr., sem fonte aparente: “O cinema é a única arte que surpreende a morte no seu trabalho”. A chave dessa relação está na junção das ideias de morte e trabalho, as quais são uma espécie de força motriz da carreira de Michael Mann. Thief, Manhunter, Heat, Collateral, Miami Vice, Blackhat, entre outros exemplos, são todos filmes em que a morte aparece como consequência do trabalho, quase como uma elevação metafísica das situações retratadas, como na imagem derradeira de Viola Davis deitada ao chão em Blackhat. O próprio diretor de Ferrari, em entrevista à Variety, declarou algo que alude à tragédia dos próprios personagens: “Eu não penso na mortalidade, estou ocupado”. Tal pensamento desenha algo como uma estrutura base para seus filmes, na qual os personagens perseguem sua ocupação, enquanto a morte os persegue logo atrás.
A representação da morte está no cerne de boa parte das histórias já contadas. Tomando como exemplo a literatura, tem-se estudos aprofundados sobre a maneira de abordar-se a morte e o propósito de fazê-lo em uma narrativa. Sobre isso, a pesquisadora Luiza Nascimento Almeida parte de Bakhtin e Tolstói para descrever mais a fundo tal impulso:
‘A memória da vida finda do outro possui a chave de ouro do acabamento estético do indivíduo’ – aponta Bakhtin. Tolstói parece estar perfeitamente ciente disso ao registrar, em 1890, em seu diário: ‘Mesmo que velho ou doente, mesmo que você tenha feito muito ou pouco, a missão completa de sua vida não só não terminou, mas ainda não recebeu seu significado decisivo e final até o último suspiro’. O espírito, portanto, ‘não pode ser agente do enredo’, visto que para o espírito não existe nenhum enredo, uma vez que a consciência da morte lhe é negada. A vida que vivencio é uma existência aberta, inconclusiva, não-mensurável emocionalmente, e não há, em razão disso, fronteiras de onde se possa partir e aonde se possa chegar, extraindo, nesse âmbito, um sentido.” (p. 17)
Como diria Claude Chabrol, não há nada mais relevante para o cinema que o ato de lidar com a vida e a morte. Ferrari definitivamente se enquadra nesta relevância. Desde o início do filme, envolve-se a imagem do protagonista em morbidez, como uma máquina de sucesso alimentada pela tragédia — esta que é corroborada pela contextualização histórica, pois até mesmo os títulos que anunciam o ano de 1957 são suficientes para que a visão histórica privilegiada dos realizadores e da audiência entre em voga. Conhecer o acidente é experienciar o filme como uma bomba relógio de Hitchcock.
No entanto, a relação do meio cinematográfico com a morte vai além do propósito meramente narrativo. Desde Bazin entende-se que a forma tem sua própria relação com o fim da vida, como uma forma de exorcizar o tempo. É parte da natureza técnica da arte cinematográfica, essa capacidade de congelar, de reproduzir, uma imagem real e sua duração à eternidade. Adiciona-se a isso a noção de montagem, relacionada à morte por Ismail Xavier ao analisar Pasolini:
O homem se exprime pela ação e esta não ganha significado enquanto não se completa. Morrer é necessário para que adquiramos sentido (entremos no espaço da cultura e da história). A morte opera uma síntese rápida da vida e lhe envia uma luz retroativa, uma seleção de pontos, constrói atos míticos e morais fora do tempo. Opera, enfim, como a montagem do cinema” (p. 104).
Os mecanismos de empatia clássicos do cinema narrativo são embasados, consciente ou inconscientemente, nesta capacidade. A morte subjetiva e a morte formal apoiando-se perfeitamente sobre os pilares que são o naturalismo e a montagem, uma estrutura infinitamente reprodutível. John Huston, cineasta tradicional que é inspiração declarada de Mann, se pronunciou sobre a relação entre a vida e o cinema clássico em entrevista com Rosemary Lord:
Acho que existe hoje um tipo de liberdade que não existia antes. Teríamos maneiras de contornar as coisas e isso não teria sido tão puro, não teria sido tão direto, a forma que os filmes têm: um começo, um meio e um fim – porque me parece que essa forma é significativa. Tenho uma mentalidade clássica a esse respeito. Supõe-se que uma imagem reduza a vida, reduza um livro ou uma peça, em termos filosóficos significativos, se você quiser, de modo que seja uma demonstração ou um aspecto da vida; deveria ser uma organização.” (John Huston em entrevista com Rosemary Lord, 1974)
Ferrari é um filme constituído de uma narrativa muito longe de experimental. É uma história em moldes clássicos, com personagens vivenciando situações em sequência lógica e com as viradas emocionais tradicionais de um filme do tipo. Porém, a maneira como a cena do fatídico acidente é tratada muda tudo. É uma das coisas mais chocantes que Mann já fez — semelhante apenas a breves lampejos presentes em Blackhat e no piloto de Tokyo Vice —, justamente por deliberar no mundo do artificial. A obra recente do diretor revela tal apreço, principalmente pelo trabalho pioneiro com a câmera Thomson Viper e suas investigações da textura digital. No entanto, Ferrari é dotado de uma imagem digital limpa, muito semelhante a tudo que está sendo produzido pelas câmeras atuais.
Com isso, a quebra que a cena do acidente gera é ainda maior. Não por subitamente alterar a qualidade imagética do filme, mas por se aproveitar da manipulação digital para libertar o filme da própria obsessão pela semelhança. Em um plano sequência do impossível, a câmera digital de Mann viaja por um acidente que ocorre em um piscar de olhos para chegar ao que realmente importa: as consequências. Perduram imagens grotescas, de um acidente sem sentido, cuja aparência se aproxima até mesmo do âmbito da animação. O distanciamento formal, que remete ao uncanny valley, contrasta com a mais potente tragédia reforçada pela narrativa. Não há mais filme a partir disso, tudo perde o sentido, em uma contradição essencial à fórmula seguida até então.
Na porção restante após este fatídico momento, pegando emprestadas as palavras de André Bazin sobre Humphrey Bogart, Ferrari se define por uma “maturidade existencial que aos poucos transforma a vida em uma ironia tenaz em detrimento da morte”. É a forma concreta do pensamento expressado por Michael Mann em múltiplas entrevistas recentes, de que “nossas contradições só se resolvem nos filmes. Na vida real, as levamos ao túmulo”. O novo filme do diretor age contra a própria natureza do cinema: impede que a morte tenha resolução, que o conflito se alivie. Tanto pelo impacto narrativo de uma catástrofe arbitrária, que desnorteia qualquer espectador, quanto pela negação da semelhança imagética através do artifício, ao se debruçar em efeitos visuais impossíveis para exagerar ao máximo a estética sangrenta. A morte como o horror definitivo, exposta à audiência de supetão, como a máquina que é na vida real: inescapável, uma contradição essencial que não se resolve em ninguém.