A Lira do Delírio: o que diz o carnaval?

Em tempos de carnaval, o clássico atemporal de Walter Lima Jr. ressurge como signo de um cinema que ficcionaliza a própria noção de tempo 

Felipe Palmieri

Se você se dá conta de que o cinema não passa de uma aventura e encontra pessoas que entendam isso, tudo fica absolutamente fantástico.

Walter Lima Jr. em entrevista à Filme Cultura, 1978

O Carnaval é o início e o fim de A Lira do Delírio, e talvez a razão instintiva que remete à memória do filme — as imagens captadas são como fenômenos singulares, universais pela própria natureza. O que há entre as extremidades do filme, no entanto, é uma outra coisa, cujo entendimento perpassa o filme em si, seu processo de realização e o contexto que o circunda. Mas o que é o Carnaval nessa justaposição? Ao partir-se da aglomeração física das festas de rua para algo abstrato — um turbilhão imagético em fluxo rotatório, no qual as peças são o todo em si mesmas, sem que uma imagem integral e lógica tome forma —, essa é a pergunta que fica.  

Ismail Xavier já observou uma relação tradicional entre o cinema popular e o Carnaval em O Cinema Brasileiro Moderno, afirmando que frequentemente o Brasil dessas telas é todo amor, carnaval e sonhos. Isso é visível no cinema brasileiro principalmente na primeira metade do século XX, período que Laurent Desbois cita o surgimento do “musicarnavalesco” como um antecessor das chanchadas, em A Odisseia do Cinema Brasileiro. Desde então, já havia a mescla de técnicas de captação no registro do Carnaval, com imagens documentais, de festas de rua, sendo inseridas em meio à uma narrativa de cunho ficcional — aspecto essencial de A Lira do Delírio

Inclusive, as imagens do Carnaval foram as primeiras a serem captadas para o filme  — ainda com uma intenção diferente, de realização de um outro projeto que acabou não se concretizando. Walter Lima Jr., em entrevista à Filme Cultura, contou como o trecho inteiro foi captado em 1973, durante as celebrações dos 400 anos da cidade de Niterói — e a “barra estava pesadissima”. Essas imagens restaram, desconexas de um planejamento inicial, mas cheias de uma vida própria, com o elenco deslocando-se pelo Carnaval de Niterói, vivenciando-o.

Talvez o distanciamento permitido pela frustração desse processo de captação tenha levado Lima Jr. ao planejamento que viria a seguir: de pensar um filme livre, que possa ser montado e remontado à vontade em torno dessas imagens. A manipulação do tempo cinematográfico seria o conceito condutor, partindo desse Carnaval falho, mas que carrega consigo uma essência — que se faz presente nas palavras de Desbois sobre o Carnaval no cinema: “(…) tempo, espaço e ação são impostas pelo tema: cinco dias de Carnaval, época de metamorfose e do impossível”.

A dita “barra pesada” do Carnaval niteroiense levou o clima dessas imagens a outro espaço. Uma subversão daquilo que Ismail Xavier havia mencionado como o modus operandi do Carnaval no cinema brasileiro, pois em tela nada traduzia alegria e amor. Ao analisar diretamente A Lira do Delírio, Xavier aponta tal contradição: “(…) há a crise de identidade, a angústia, a inquietação que a festa não resolve na personagem”. O crítico José Haroldo Pereira também sintetiza tal sentimento com suas palavras sobre o filme: 

“(…) por cada paixão frustrada, os personagens afogam suas mágoas no Carnaval, vala comum onde despejam todas as angústias, instante em que se lava a alma para ‘tudo recomeçar na quarta-feira’, hora de catarse coletiva, quando as pessoas entram em transe e botam o que sentem pra fora.”

Com um hiato de 3 anos entre a captação do Carnaval e o restante das filmagens, essas primeiras imagens do filme se entrelaçam com o procedimento formal sendo proposto. A ideia do próprio tempo como uma ficção é como Lima Jr. descreve a estruturação do longa, feito sob uma fórmula rígida, mas que permite a liberdade: realizava-se sempre uma cena e o oposto desta. Criava-se, assim, uma opção infindável de sequenciamentos, formalizando a ideia do diretor: “O tempo tomado como uma ficção. O tempo é realmente uma ficção. O fato acontecido ontem e o fato que está acontecendo agora têm o mesmo peso”. Tal experimentação leva ao redemoinho abstrato que forma o miolo de A Lira do Delírio, no qual cada cena existe de forma coerente consigo mesma, mas em total desconexão lógica do que vem antes e depois. No entanto, aquilo que faz tudo funcionar e prende uma parte na outra é o clima, o sentimento generalizado que o filme ostenta, que permanece consistente mesmo na desordem.

À questão do Carnaval, o clima é a resposta. Pereira define o filme de Lima Jr. como uma “metáfora carnavalesca”, na qual a “amargura e euforia” do período envolvem os personagens. À primeira vista, parece até contraditório que o alicerce de um filme que tenta rejeitar o tempo seja justamente uma marcação de período tão evidente. Porém, o que é extraído do carnaval em A Lira do Delírio vai além do lógico, visto que a significação dada não é focada naquela festa em específico, ou em qualquer detalhe informacional. O aspecto documental acaba por ressaltar a familiaridade entre espectador e tela — não pela felicidade abundante de um Carnaval imaginado, mas pela abreviação de um evento que existe na memória de todo brasileiro. Os pilares do filme residem nessa conexão, em que o Carnaval específico retratado deixa de existir para que seja evocado como uma ideia universal; como um sentimento.

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