Orfeu Negro: uma coreografia de homens e mitos

Erguido por uma dinâmica de tradução entre meios e culturas, “Orfeu Negro” transpõe o mito grego de Orfeu e Eurídice para o Rio de Janeiro da fruição entre corpos, desconstruindo suas teias morais pela subversão dos ritos carnavalescos

Davi Krasilchik

A transmutação de um mito em outro revela a continuidade de uma tradição — tradição de se traduzir a vida em lenda, de se fabular a existência, e navegar por entre as intersecções entre a verdade e a suposição. É de uma tradição unificada que diversos povos e civilizações se entregam a ritos de festividade na tentativa de tatear esse universo das ideias, de sobrepor a rigidez da racionalidade e de uma sistematização dos sentidos e prazeres. A busca por essa elevação foi estudada pelo filósofo Mikhail Bakhtin, que elegeu o Carnaval como melhor representante dessas condições. 

Ele valoriza a atemporalidade da festa, guiada por um teor ritualístico, de preservação de práticas que se adaptam aos novos tempos e sujeitos que se apresentam. Sua carga simbólica tem forte manifestação, afiliada a um campo imagético que sucateia concepções hegemônicas quanto ao sacro, o moral e, até mesmo, a finitude da vida. Em sua proposição de um pacto entre o carnal e metafísico, e igualmente composto por traduções entre meio e cultura, podemos observar o brasileiro Orfeu Negro (1959) pela lógica de uma transcendência carnavalesca.

Ofereciam uma visão do mundo, do homem e das relações humanas totalmente diferente, deliberadamente não-oficial, exterior à igreja e ao Estado: pareciam ter construído, ao lado do mundo oficial, um segundo mundo e uma segunda vida […]. (BAKHTIN, 1987, p. 5). 

A queda de uma pipa dourada, sobrevoando os morros cariocas, transporta Eurídice (Marpessa Dawn) para o Rio de Janeiro. Por mais que reconheça uma versão anterior, mencionando a lenda da mitologia grega, sua predestinação já está selada. Seus passos estão fadados ao reencontro com um Orfeu moderno (Breno Mello), à perseguição por um Aristeu fantasiado para o bloco de carnaval, à provação final do amado em uma sessão espírita. Quanto ao parceiro, tem seus dotes musicais adaptados para o líder de uma Escola de Samba, figura humana endeusada pelos tietes locais. 

Também pela adição de uma barreira anterior ao próprio projeto, o francês Marcel Camus guia o seu ballet terceiro mundista pela ótica da antropofagia, menos pela amplitude da sua realização, e mais pelas arestas deixadas por uma visão externa. Um Rio de propulsão corpórea, tecido por vestidos das mais diversas tonalidades, ungido por um autor que crê na espontaneidade daqueles dispostos frente à câmera, vê-se atravessado pela forma redutora como descreve a falência moral de algumas personagens.

Nem por isso “Orfeu Negro” se distancia da essência anaforma da festa em que se reveste, jamais deixando de acreditar em seu denominador comum: a imagem. A mise-en-scène, pautada pelo movimento em sua forma mais pura, costura passos e gestos para dilatar uma temporalidade subordinada ao tempo das canções e coreografias. A sugestão de braços e pernas, borrados e escondidos através do princípio e término das ações capturadas, sugerem o deslocamento para o mundo alternativo de Bakhtin.

Esse organismo mutante que se manifesta pela alegoria das máscaras e fantasias corporiza o drama da Antiga Grécia. Confere ao mesmo um volume, tridimensionalidade. E nem por isso deixa de consumá-lo, deglutindo o mito em seus aspectos mais puros. Nisso, o filme se filia mais à realização bruta do que se especula ter sido o Carnaval Grego do que à essência dos ditos populares, e mesmo associado ao manifesto de Oswald de Andrade, em seu projeto de demolição de exatidões ou perambulações vazias sobre a humanidade.

O trabalho contra o detalhe naturalista – pela síntese; contra a morbidez romântica – pelo equilíbrio geômetra e pelo acabamento técnico; contra a cópia, pela invenção e pela surpresa. – (Manifesto Antropófago. In: Revista de Antropofagia. Reedição da Revista Literária publicada em São Paulo – 1ª e 2ª dentições – 1928- 1929. São Paulo: CLY, 1976.)

Um Orfeu em carne e osso está distante do posto anterior, intocado através de milênios pela tradição oral. O encontro com Eurídice abala o casamento com Mira (Lourdes de Oliveira), escamoteada pelo papel de admiradora distante, excluída da balada entre as lendas humanizadas. Uma Eurídice em carne e osso não nega a proposição de se fantasiar como a própria prima, perambular por entre identidades alheias. Entre as fugas de si e a ambição pelo Outro, é no misticismo do amor que o filme comunica a língua de outra dimensão, pretendida pela operação ritualística, saída dos contos conjugados pela imaginação. 

É pela língua das canções que Orfeu faz nascer o Sol, subvertendo o fim de sua existência na figura de pequenas crianças, ingênuas e providas da crença em antigas histórias, dispostas a herdar um legado. Ademais, a derrocada do casal apaixonado surge menos por uma fidelidade dramatúrgica com o conto original, e mais por uma espécie de desvio dos costumes sociais e filiação a uma moral mais própria.

A filiação ao fervor de uma manifestação esporádica, predestinada ao fim desde o surgimento, mas sobressalente a todas as formas de expiração. Resta a força imaterial das potências no pacto entre um e outro, das pulsões que emanam da ruptura de códigos gélidos e das paixões que unificam os que se amam para além de qualquer finitude carnal. 

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