François Truffaut por Antoine de Baecque

Ilustração de Pio Piolho para o dossiê François Truffaut (fevereiro/2022)

Releia a entrevista com o historiador e biógrafo de François Truffaut, publicada na Vertovina durante a edição Juvenília, em fevereiro de 2022. Confira também a introdução de Pedro Vidal sobre Les Quatre Cents Coups

Carolina Azevedo e Pedro Vidal

A infância nua de Truffaut

Escrevo esse texto em primeira pessoa, pois a fita de Truffaut é possivelmente o filme mais importante da minha vida, o que representa tudo o que defendi e lutei até aqui. Mas, por mais pessoal que o texto seja, não quero torná-lo uma divagação ordinária, nem uma análise criteriosa. É difícil, pois, assim como Paulo Emílio escreveu sobre sua relação com La Grand Illusion, de Jean Renoir, ao exercer o ofício da crítica, sinto que violo e destruo minha intimidade com o filme.  

Penso que Les Quatre Cents Coups tem espaço para um texto pessoal pois o filme de Truffaut foi notável sobretudo por protestar pela pessoalidade no cinema. Antes de passar da máquina de escrever à câmera, a carreira crítica de Truffaut foi marcada pela provocação de polêmicas no meio cinematográfico francês. Com declarações frequentemente escandalosas e panfletistas, sem nunca fugir da autenticidade: “os jovens cineastas se expressarão na primeira pessoa”, “o filme do amanhã será um ato de amor”. 

Suas controvérsias foram tão numerosas ao ponto dos críticos de cinema da época aguardarem ansiosamente o lançamento de seu primeiro filme para poderem escrever “depois de ter causado tanto barulho, Truffaut devia ter ficado em casa!” Não foi o caso, o filme das crianças de Truffaut foi o filme mais sincero e genuíno com o qual a audiência podia se deparar na época. 

Les Quatre Cents Coups une o que há de mais febril em Jean Vigo, de simples em Jean Renoir e de culposo em Alfred Hitchcock. Febril ao contrapor o amor e o ódio em harmonia: os pais levam o filho ao cinema, mas o largam em um camburão aos prantos sem nem pensar duas vezes; simples ao encontrar a emoção nos menores gestos: nos diálogos entre as crianças e na expressividade tímida do rosto de Jean-Pierre Léaud — são raros os momentos em que a câmera está muito próxima das crianças, mas ainda assim é possível se emocionar pelas suas ações e perceber cada detalhe de suas feições; culposo ao transformar a vergonha em poesia, que revela o descaso parental ao punir a infância e seus sonhos pela sua simples forma de existir no universo.

C’était ma mère, monsieur…

Ta mère, ta mère! Qu’est-ce qu’elle a encore?

Elle est morte!

Como escreveu Godard, ao invés de colocar a câmera à altura do homem, como Howard Hawks, Truffaut a coloca à altura das crianças, abaixo, entre elas. É um retrato pessoal, sem ser estritamente autobiográfico, que esbanja sinceridade nos gestos, que considera a representação dos atores mais importante que o próprio personagem. “Conseguir fazer um filme insincero é a coisa mais difícil que há, pois nesse caso não existem referências. Se escolhi exprimir a solidão de uma criança é porque a infância permanece próxima de mim.”

O realizador inaugura seu cinema com uma carta moderna à infância, à amizade, sem regalias, filmando a infância nua de uma forma marginal, à la Neorrealismo Italiano, se assemelhando a um conto de James Joyce ou a um livro de Honoré de Balzac. Truffaut concebe a Nouvelle Vague, na crítica e nas telas, — junto a um dos principais momentos da transição do cinema clássico para o moderno — sem a necessidade do exímio fotográfico ou do esmero técnico, apenas filmando algumas crianças e levando uma câmera às ruas.

Com Les Quatre Cents Coups, Truffaut dá nascimento a um cinema urbano, de relacionamentos, de humor, de música e de beleza, destinado a uma juventude delinquente e desajustada. Truffaut nos mostra que, ao final, até mesmo Antoine Doinel pode ver o mar pela primeira vez.

Aos que ainda perdem tempo na querela mais improdutiva da cinefilia mundial, que é a disputa infantil entre Truffaut e Godard, aproveito e faço das palavras de um amigo querido as minhas: “quem não ama esse filme não entendeu absolutamente nada da transição para o cinema moderno”. Mais tarde, no filme de Maurice Pialat, produzido por Truffaut, o cineasta faz uma revisão cruel e pessimista de Les Quatre Cents Coups, da morte de um sonho, ainda que permeada de gentileza. O filme de Truffaut é a representação desse idealismo, do nascimento de algo cujas reverberações ainda hoje não puderam ser medidas.


Autor da principal biografia sobre o diretor, antigo editor da Cahiers du Cinéma e do caderno de cultura do jornal francês Libération, Antoine de Baecque fala um pouco sobre o cineasta em sua intimidade, do sofrimento infantil às obsessões juvenis. 

Carolina Azevedo: Qual é o seu filme preferido de Truffaut? 

Antoine de Baecque: Meu filme favorito de Truffaut pode ser L’Enfant Sauvage. Talvez porque ele seja um dos mais simples, um dos que Truffaut se envolveu mais diretamente, tanto que ele até atuou. Por isso penso que é um filme com uma força emocional muito grande, verdadeiramente incomparável com o resto da obra de Truffaut. Ele realmente encontrou uma forma que corresponde exatamente a um projeto que foi formulado. Acho que vemos isso muito bem no trabalho de desenvolvimento do roteiro, com essa vontade de ir sempre ao mais simples, ao mais concentrado na ação e na relação entre o educador e a criança. Por isso ele é provavelmente o meu Truffaut preferido.

C: Penso que quando falamos de Truffaut há também sempre Godard, a hostilidade e as diferenças entre as obras dos dois mestres da Nouvelle Vague. Há espaço para comparar as duas obras? 

AB: Nunca escolhi entre Truffaut e Godard. É verdade que são muito diferentes. Para mim, não há um mais interessante que o outro, acho que Godard é um gênio da forma que revolucionou o cinema. Truffaut não foi isso, ele tinha uma humanidade, uma maneira de habitar esses filmes que realmente me toca mais do que os filmes de Godard. Então, acho que cada um fez o seu cinema e que são difíceis de comparar. Nunca me fiz a questão de escolher um contra o outro, que é uma tendência na cinefilia francesa, a partir da briga entre Truffaut e Godard de 1973, quando eles se separaram depois de estarem muito próximos por cerca de vinte anos. Guardo os dois aspectos da relação entre Truffaut e Godard, tanto a amizade muito forte quanto a disputa e a briga entre os dois, mas sem nunca escolher entre eles. Acho que os dois tiveram seu cinema, sua razão, sua psicologia, então é uma atitude que eu tenho em relação ao Truffaut e Godard e aos outros cineastas da Nouvelle Vague. Meu projeto é contar a existência deles. Se eu começasse a escolher um contra o outro eu acho que não estaria sendo fiel ao projeto que me dei. O que me interessa são suas semelhanças e suas diferenças, não de certa forma para julgá-los ou me posicionar no modo como eles vão ocupar o terreno do cinema e ocupá-lo na rivalidade. Essa rivalidade me interessa, mas acho que não cabe a mim escolher.

C: O cinema de Godard é evidentemente mais político, mais engajado, enquanto o de Truffaut foi até descrito como alienado. O que você pensa sobre isso? 

AB: Esses são pontos que podem ser dados. Esses são os pontos que podemos dar ao cinema de Godard, engajado, e ao de Truffaut, mais desengajado do que alienado, com certeza, mas não acho que seja algo que devamos julgar positiva ou negativamente. De fato, é interessante que Godard esteja engajado e que Truffaut tenda a permanecer desengajado. Cada um deles tem engajamentos e desengajamentos, aliás, que fazem seu cinema. O cinema de Godard não foi sempre engajado e o cinema de Truffaut nem sempre esteve desengajado.

Em particular, a causa das crianças é de fato algo que contribui para o forte engajamento e investimento da Truffaut. Isso não é menos importante do que o compromisso político de esquerda de Godard. Não me baseio em um julgamento moral ou político dos filmes, não é bem meu objetivo, o que me interessa é colocar cada um no seu contexto. É verdade que, ao mesmo tempo, se pegarmos os filmes de 1970, Godard fez filmes com o grupo Dziga Vertov, os filmes que eram extremamente engajados e pareciam extremamente passionais ao contexto pós-68 na França. Mas Truffaut fez L’enfant Sauvage, um filme que me parece igualmente engajado, é apenas outra forma de engajamento, também muito corajoso, que o leva a assumir posições muito fortes e minoritárias na França da época sobre uma atitude em relação às crianças maltratadas na relação parental. São coisas que na época traziam muitas inimizades, muitas polêmicas. Não vejo Truffaut como um cineasta alienado, ele tem engajamentos com assuntos que lhe interessam, que não são menos importantes que os de Godard. É certo que Truffaut desconfiava dessa política que para Godard era uma prioridade, e por isso eles se desentendiam, os caminhos se desviavam. Mas, em retrospecto, talvez para Godard, o compromisso de Truffaut com a infância infeliz, por exemplo, é certamente um compromisso que o toca muito. Então, se colocarmos no contexto pós-68, podemos falar sobre um filme engajado ou desengajado, mas na verdade é tudo muito relativo. Meu trabalho é tentar entender o que chamarei de diferentes compromissos de Truffaut e Godard.

C: Antes de ser cineasta, Truffaut era jornalista e crítico de cinema na Cahiers du Cinéma. Como isso influenciou o seu cinema?

AB: Acho que para Truffaut me parece importante, acho que ele aprendeu o cinema dessa forma. Ele viu, entendeu, descreveu, tomou uma posição muito forte, muito polêmica e acho que são posições que Truffaut manteve ao longo da sua vida. Não concordo de modo algum com a tese de que Truffaut finalmente fez o filme que denunciou em sua fase crítica. Pelo contrário, acho que Truffaut foi muito fiel ao que escreveu e que o seu cinema pode ser visto por meio dessa fidelidade como um cinema muito mais complexo, sombrio, selvagem, menos consensual do que pensamos do cinema de Truffaut quando você pense em ideias como a de que ele acabou fazendo um cinema acadêmico. Eu acho que isso é falso. Mesmo um filme que era taxado de acadêmico na época como O Último Metrô mostra que há em Truffaut um desejo de agradar. O humano tem uma forma clássica, é inegável, mas, ao mesmo tempo, por dentro do filme, além do seu desejo de agradar, temos obsessões, fetiches, segredos, mais obscuros, muito mais complexos e interessantes do que falam os críticos. Acho que sim, Truffaut era um crítico muito famoso e muito bom e isso era algo muito importante na época e continua sendo. Mas ele teve uma postura muito decidida depois dessa fase, ele disse: “a partir do momento que eu me tornar um cineasta eu não vou mais escrever resenhas sobre meus colegas.” Isso não foi bem verdade, ele fez alguns textos bastante positivos sobre os colegas e, às vezes, também textos muito negativos sobre outros cineastas com quem nunca se reconciliou. Então, acho que há uma certa fidelidade de Truffaut ao que ele escreveu em sua juventude. 

C: Acho que Truffaut foi, antes de tudo, cinéfilo, e você escreveu um livro sobre a cinefilia. O que é a cinefilia e como o amor pelo cinema se apresenta nos filmes de Truffaut? 

AB: A cinefilia é uma paixão pelo cinema que torna o cinema mais importante do que todo o resto, é uma paixão exclusiva, uma paixão que consome, que é para ser vivida – o que significa ver dois, três filmes por dia. Jovens começam a aprender, a entender tanto qual é o sentido de sua vida quanto qual é o sentido a ser dado à sua vida. Eles obviamente aprendem um ofício, mas também para conhecer a si mesmos e aos outros. A cinefilia é uma paixão que te permite aprender a viver. Truffaut era o modelo disso, ele dizia muitas vezes que o cinema o salvou, que o cinema o criou, lhe deu uma razão de viver e é vendo, escrevendo e compreendendo filmes – e no encontro com cineastas – que Truffaut foi capaz de se tornar um homem-cinema. Então é isso que a cinefilia é para Truffaut. 

Acho que uma definição um pouco mais restritiva de cinefilia é que o cinéfilo é aquele que conhece mais filmes, que viu mais filmes, créditos, nomes de roteiristas e atores. Eu acho que existe uma cinefilia assim mas não é a do Truffaut, ele era um verdadeiro conhecedor de cinema, um grande estudioso do cinema, ele dizia que viu mais de 3000 filmes, mas eu acho que para ele a cinefilia é superior a isso, ela dá sentido a isso tudo. Ou seja, para Truffaut, o sentido de sua vida é se tornar um cineasta, muitos cinéfilos não se tornaram cineastas, mas na Nouvelle Vague a maioria deles se tornou. É bom porque a cinefilia adquiriu tal dimensão existencial que fez com que fosse vivida como um momento de iniciação, um momento de aprendizagem e o que se aprendia era que se tornar homem, se tornar adulto era também se tornar cineasta. É isso que eu acho importante na cinefilia de Truffaut, é isso que permitiu que ele se tornasse o homem que foi e o cineasta que foi.

C: Como você disse, a infância e o crescimento estão quase sempre presentes nos filmes de Truffaut. Os filmes sobre a vida e crescimento de Antoine Doinel estão entre os mais importantes da Nouvelle Vague. Como a vida pessoal do artista influenciou sua criação?

AB: ​​Truffaut nunca escondeu que fazia um cinema autobiográfico. Fazer um cinema que refletisse e retomasse os elementos de sua vida, de sua existência. Truffaut não quis discutir com sua família, que ficou muito chocada com filmes como Les Quatre Cents Coups, que mergulhando no contexto dos arquivos de Truffaut podemos obviamente ver que é uma posição de estrategista que Truffaut assume, não é uma posição de verdade. A verdade do cinema de Truffaut é que se trata de um cinema intimamente autobiográfico, que conta, portanto, de forma muito detalhada, até uma obsessão fetichista, os momentos de sua própria existência, em particular através do personagem de Antoine Doinel, é claro.

Esses momentos de passagem da infância para a adolescência e depois para a idade adulta, ou seja, essas iniciações, eu acho que como você disse esse são o assunto principal do Truffaut, isso é o que mais lhe interessa e esse é um tema que vai além do caso de Antoine Doinel. Se deixarmos Antoine Doinel de lado, encontramos outras crianças do cinema em Truffaut, como L’enfant Sauvage, que mencionei anteriormente. Em geral, por exemplo, em Les Deux Anglaises também temos muito da nossa paixão muito pessoal por Truffaut e pelos momentos de iniciativa na juventude. É verdade que são momentos muito importantes para Truffaut. Ele está muito atento ao trabalhar eles, filmando-os como quer e dirigindo os jovens atores de uma forma muito particular. Então, é fato que Truffaut estava muito agarrado a esses momentos de passagem, da existência de uma criança mal amada, infeliz, que se salva, que prefere viver a ser um delinquente ou acabar com a vida – que também é possível, ele faz duas tentativas de suicídio quando jovem. Então, esses momentos, é claro, constitutivos da identidade de Truffaut vão levá-lo a estar muito atento a tudo que se relaciona a esse momento da infância e a se interessar pela dificuldade de ser criança, a passagem para a vida adulta, é um tema que implica em um engajamento permanente desde seu primeiro filme. Em todos os momentos de sua vida até o fim, Truffaut estará muito atento a esses assuntos e à causa da infância, em particular da infância maltratada e infeliz, acho que isso é o que é muito importante para Truffaut.

C: Truffaut dizia que ele “fazia filmes para realizar seus sonhos de adolescente”. Que sonhos eram esses? 

AB: Não é fácil de responder, mas são traços que se vinculam a esse modo dual de existência. Por um lado, sair disso de ser uma criança infeliz: o sonho de Truffaut é ser feliz, algo que ele não é enquanto criança, acho isso muito importante. Então, acho que Truffaut vai fazer de tudo para ser feliz, para estar cercado de crianças felizes. Acho que é algo muito importante para ele. Ele tem filhos, três filhos e ele tem muito cuidado para ser um pai que fará seus filhos felizes – claro que é tudo muito relativo, mas de qualquer forma ele é um pai amoroso, isso é muito importante para Truffaut e eu acho vem diretamente de sua infância infeliz.

O outro sonho de Truffaut é ser cineasta, é claro, e muito rápido porque é um dos traços presentes desde muito cedo na correspondência que Truffaut trocava com amigos de infância, em particular seu amigo Robert Lachenay, com quem troca ideias sobre literatura e depois cinema com a intenção muito clara de querer tornar-se cineasta. Eu acho que o sonho de infância de Truffaut é, portanto, duplo: ser um homem feliz, diferente da infância que ele teve, essa é provavelmente a coisa mais difícil, na verdade Truffaut não será um homem feliz, mas um homem que passou por muitas angústias, dificuldades na vida e que certamente vem dessa infância infeliz e isso é algo de que ele estava muito ciente. Ele nunca se recuperou de sua bastardia e de seu infortúnio quando criança. É por isso que ele queria que as crianças ao seu redor fossem felizes, tanto em sua vida quanto nos seus filmes, que aprendessem a viver graças ao cinema. 

E, por outro lado, acho que Truffaut foi plenamente satisfeito com seu segundo sonho, o de se tornar cineasta. Acho que Truffaut se tornou o cineasta que sonhava ser. Então, deste lado há uma grande satisfação que sempre foi construída no fato de se proteger. Protegendo-se do meio do cinema, de seus adversários, ele  sempre foi muito reservado, dando apenas o que queria dar. Ele construiu um personagem legal, o cara legal do cinema francês que foi, para mim, um personagem que permitiu que ele ficasse tranquilo. Isso permitiria que ele não levantasse questões complicadas e acho que com isso Truffaut se tornou um cineasta muito importante. Desse lado realizou o seu sonho, mas realizou-o à custa da defesa, do segredo, de uma forma de proteger a sua existência que, sem dúvida, torna o seu cinema muito excitante e talvez lhe instituisse também um certo limite. Isto é, que Truffaut queria agradar tanto como cineasta que achava difícil transgredir certo número de leis e proibições da profissão. Truffaut nunca quis ir longe demais, no que considerava serem as regras que regem uma profissão ou uma gramática cinematográfica. Truffaut nunca quis ir além, seu amor pelo cinema era tão forte que ele nunca quis destruí-lo.

C: Para você, o que faz o cinema de Truffaut tão sensível? Que elementos fazem dele aquilo que ele é? 

AB: Acho que é o aspecto autobiográfico que torna o cinema de Truffaut tão sensível e tão comovente, acho que cada um de nós pode se reconhecer na autobiografia de Truffaut, ela gera uma reflexão que reflete algumas partes de nossa própria sinceridade, de nossa própria privacidade. É por isso que Truffaut é um cineasta que pertence a todos e faz isso sendo o mais íntimo e pessoal possível, com respeito aos detalhes, com uma visão obsessiva de sua própria existência, buscando uma certa verdade constante em relação a si mesmo. Assim, Truffaut torna-se um cineasta que pertence a todos. Podemos dizer que é uma atitude que qualquer um pode reconhecer, contar algo muito íntimo assim. Então acho que é certamente esse vínculo que ele estabelece entre seu cinema e sua existência que tornará seu cinema tão sensível e tão comovente. Não são muitos os cineastas que foram tão longe quanto Truffaut na busca íntima de uma forma de verdade sobre sua própria existência, e tudo dá essa verdadeira estrutura, sua verdadeira forma ao seu cinema. Ele olhou muito desse lado, talvez às custas de uma busca mais formal, mais experimental. De qualquer forma ele foi muito longe na autoficção, na autobiografia, no auto-cinema ao privilegiar esse aspecto em relação a outros aspectos procurados por outros cineastas muito próximos de Truffaut e da Nouvelle Vague.

C: Como alguém que conhece quase tudo sobre a vida de Truffaut, o que mais te impressiona nele? 

AB: O que mais me impressiona é uma organização muito eficiente de sua existência. Truffaut estava sempre trabalhando em dois, três projetos de filmes em paralelo, com dois, três roteiristas diferentes. Era uma organização extremamente controlada, eficiente, e que visava assim viabilizar o cinema que queria fazer filmes diversidade, mesmo que autobiográficos os filmes eram muito diferentes, diversidade essa que Truffaut também amava. Ele trabalhou com pessoas muito específicas nesse tipo de filme que queria fazer. Ele progrediu assim em vários projetos, acho que nunca ficou sem projetos cinematográficos, e isso representava uma organização de sua profissão que era extremamente controlada por ele, já que ele era seu próprio produtor, em grande parte seu próprio roteirista. E então isso permitiria a Truffaut levar uma existência muito organizada sem nenhuma loucura, mas ao mesmo tempo bastante rica em encontros, amor e admiração. Ele podia tomar tempo para seduzir uma mulher, então conhecer um cineasta que ele admirava como Renoir e Hitchcock, então foi tudo muito organizado. É impressionante, aliás, quando você chega aos arquivos de Truffaut, que talvez sejam os arquivos do cineasta mais bonitos do mundo, é justamente a organização deles e a maneira como isso reflete na organização do tempo de Truffaut, na organização da sua existência. Acho raro ter um homem que se construiu com tanta precisão, que construiu sua vida com tanta precisão e isso é algo que me impressiona.

Mas não estou dizendo que é necessariamente um modelo, também é algo bastante aterrorizante, bastante inquietante. Truffaut também não parou, dentro dessa organização, de guardar segredos, de preservar sua existência e depois também para voltar, reescrever suas memórias, e depois usá-las, explorá-las para que entrem em seu cinema. E nessa organização nada é abandonado, tudo se encaixa nesse sistema, todos os elementos de sua existência, de sua vida, de seus encontros, todas as mulheres, cineastas, roteiristas, todos têm um lugar na sua existência e esse lugar corresponde exatamente ao que ele quer. Isso é algo que pode ser muito inquietante. É um sistema que é ao mesmo tempo muito impressionante e muito perturbador para mim. Quando entramos nos arquivos de Truffaut, temos a impressão de entrar em uma espécie de cérebro, de Big Brother em que absolutamente tudo é controlado, tudo é dominado, as situações que ele vive, as pessoas que ele conhece, que podem ser instrumentalizadas umas contra as outras , isso também é muito impressionante. Isso não se encontra aos outros retratos do homem que Truffaut desenhou, esse retrato de um cara legal do cinema francês, simpático, educado, que responde a todos, que as pessoas querem ouvir, não, tem outro Truffaut que é realmente uma espécie de grande mestre da organização de sua própria existência. Ele está no controle.

C: Assim parece que foi quase fácil escrever a biografia que você escreveu sobre Truffaut. É verdade?

AB: Foi fácil no sentido de que tudo estava lá, os arquivos, mais de 200 magníficas caixas de arquivos sobre toda a existência e os detalhes da vida de Truffaut. Assim, tornou possível, rico e emocionante o projeto de escrever uma biografia. Mas, além disso, também é algo que dificultou a escrita biográfica no sentido de que também era preciso desfazer a organização que Truffaut havia dado à sua vida. Essa máscara que ele tinha, esse personagem que ele desenhou, o confrontar. Foi criado um jogo de construção e depois desconstrução do que o próprio havia construído. Truffaut chamava isso de método de caixa de sapato, essa caixa era para colocar documentos, informações, situações, ele guardava e preservava, ele tinha seu método para construir roteiros, ele acumulava em dois, três, dez anos elementos em uma caixa, que muitas vezes eram os elementos de sua própria existência, elementos de um contexto, elementos de referência a filmes, livros. Essas caixas também foram usadas para escrever sobre sua existência, esse método de caixa de sapato é magnífico porque dá a possibilidade de entender Truffaut, o que ele foi, como ele fez esses filmes, como ele trabalhou, e a biografia é nutrida por tudo isso. Mas é necessário em uma biografia deixar de lado o ponto de vista do cineasta. A biografia não é a história da existência de Truffaut como ele queria que fosse escrita. Então, você tinha que se distanciar de suas fontes, de seus arquivos, do seu cinema. Não podemos julgar moralmente, como disse antes, mas situar ele em um contexto, na natureza organizacional e obsessiva de Truffaut. Então você pode ver que ele escreveu sobre sua vida, ele pegou diários e os reescreveu. Ele queria manter algumas coisas e não outras. Truffaut faz escolhas todas as vezes em sua vida e o biógrafo deve entender essas escolhas com uma distância de seu objeto, então isso é tanto a felicidade dos arquivos do biógrafo quanto a dificuldade para o biógrafo também. O biógrafo deve ter certa distância de seu objetivo, não queríamos escrever uma biografia “truffautiana”, mas uma biografia de Truffaut, que é outra coisa.

C: Truffaut completaria 90 anos neste mês [fevereiro de 2022]. Qual é o legado, a herança do cinema de Truffaut para o cinema de hoje em dia? 

AB: Eu o encontro de várias maneiras. Acho que o princípio do cinema de Truffaut, ou seja, o cinema autobiográfico, pessoal, obsessivo, digamos, e organizado como tal, acho que é uma lição sempre interessante de certa forma para um jovem cineasta de hoje. Acho que, a partir de Truffaut, contar a própria vida no cinema se tornou algo mais legítimo, possível e até relativamente comum. Então o legado de Truffaut está na vida de Truffaut, mais precisamente a relação entre seus filmes e sua existência. Isso é algo que me parece como um legado muito importante e que sempre dará certo, essa ideia de cinema. Ele não foi o primeiro a contar sobre sua existência através do cinema, mas talvez seja o primeiro, talvez o mais importante, a fazê-lo de forma tão aberta, sistemática e sensível, e isso é algo que me parece muito importante.

Então, acho que o que me parece importante é a lealdade aos seus engajamentos. Truffaut foi certamente muito astuto durante toda a sua vida para ter uma certa coerência com a sua existência e entendeu até os maus momentos às vezes. No entanto, ser coerente com o que ele foi, ser fiel ao que ele foi, e em particular ser fiel à sua infância, essa infância difícil, infeliz e ser fiel a essa luta e, portanto, assumir o máximo possível e até o propósito de essa causa, a causa das crianças é algo que me parece muito importante para ele, o patrimônio de Truffaut. É menos um legado formal como o de Godard e mais a forma como Truffaut contou sua existência e influenciou quem veio depois. 

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