Como definir a obra do checo Jan Švankmajer e qual sua importância para o cinema surrealista? Para responder a essas perguntas, precisamos primeiro conhecer um pouco da sua história.
Por Henrique Haag*
Jan Švankmajer nasceu em Praga, em 4 de setembro de 1934. Desde cedo, se interessou pelo teatro de marionetes, razão pela qual optou por estudar teatro de marionetes na Academia de Artes, Arquitetura e Desenho em Praga e depois na Academia de Artes Cênicas de Praga. Após graduar-se, trabalhou em vários teatros de marionetes em Praga antes de descobrir sua fascinação pelo cinema.
Ele lançou seu primeiro curta-metragem, The Last Trick, em 1964. O filme mudo de 12 minutos conta a história de dois personagens mascarados que rivalizam por reconhecimento mútuo através de truques de magia. Embora o filme não seja excepcional, já mostra algumas características que Švankmajer manteria ao longo de sua carreira. Estas incluem, por exemplo, em praticamente todos seus curta-metragens a características de um Kammarspel. Esse termo, de acordo com o escritor sueco August Strindberg, refere-se a peças de teatro, ou, nesse caso, filmes, que ocorrem em um único local com um pequeno número de personagens e pouco diálogo.
Outras características de Švankmajer podem ser vistas em seu filme The Last Trick, como seus movimentos rápidos de câmera e montagem brusca. Assim como Jean-Luc Godard, Švankmajer corta tudo o que na sua opinião é insignificante, mas também sabe quando dar ao espectador um momento de pausa para respirar; diminuindo a velocidade das cenas em certos casos. Em The Flat (1968) vemos novamente essa tendência, alternando sequências lentas com outras mais rápidas. Assim, o espectador nunca fica sobrecarregado e, ao mesmo tempo, não se entedia.
Em The Flat, Švankmajer também experimenta pela primeira vez o uso de stop motion. Ele utiliza este método somente no intuído de dar vida a objetos e produzir efeitos visuais, o que de outra forma seria impossível. No entanto, stop motion é apenas uma técnica incidental em “The Flat”. Em Picnic with Weissmann, seu filme de 1968, Švankmajer se concentra quase que exclusivamente no efeito de stop motion. O curta-metragem é sobre uma série de objetos que fazem um piquenique juntos e se rebelam contra seus donos humanos. Embora o filme só utilize objetos, Švankmajer consegue dar a cada um deles uma certa personalidade e charme. Cada um dos objetos parece, de uma forma particular, humano.
Em um de seus próximos filmes, The Ossuary (1970), Jan Švankmajer introduz uma técnica jamais utilizada por ele: O voice-over. O filme conta a história de uma turma de escola primária que visita uma capela contendo mais de 70000 crânios e ossos. Surpreendentemente, as pessoas nunca são vistas, somente suas vozes são ouvidas. Ao invés de mostrar as pessoas, somente são mostradas imagens dentro da capela. A montagem é altamente intensa e mantém o espectador grudado à tela, apesar do fato de que são sempre mostrados os mesmos crânios, e às vezes até os mesmos planos deles. Neste “tsunami” de informações visuais, o voice-over é quase perdido, tornando difícil acompanhar a história da turma. Švankmajer usou voice-overs em mais alguns de seus filmes, como em Jabberwocky (1971), mas a maioria de seus curta-metragens permaneceram mudos.
A fascinação de Švankmajer pela anatomia é claramente visível em seus curta-metragens. Uma prova disso é encontrada em Historia Naturae (Suita) de 1967. O filme apresenta close-ups de peixes, aves e humanos, entre outros. Nele, é dado um foco especial às extremidades, estrutura dos ossos, articulações, órgãos etc. Em Leonardo’s Diary de 1972, Švankmajer compara desenhos anatômicos de Leonardo da Vinci com fotografias contemporâneas, como imagens de futebol, guerra, corrida de motocicletas etc.
Devido à censura das autoridades checas, Švankmajer foi incapaz de fazer filmes durante a maior parte da década de setenta. Foi somente no início dos anos oitenta que ele começou a lançar filmes novamente. Um de seus primeiros filmes após sua longa ausência nas telas de cinema foi o curta-metragem Dimensions of Dialogue (1983), que, para Terry Gilliam, é um dos melhores filmes de animação. Aqui também, Švankmajer coloca grande ênfase na anatomia de seus personagens. Mesmo em figuras feitas de lixo ou restos de comida, os órgãos como olhos, narizes, bocas e ouvidos são sempre claramente definidos. No filme Darkness, Light, Darkness (1989), o tema da anatomia é novamente onipresente. Aqui, cada órgão do corpo humano tem seu próprio papel e personalidade. Para a língua e o cérebro, Švankmajer usa até órgãos reais de origem animal. Possivelmente para mostrar a grande semelhança que existe entre humanos e animais.
Na obra de Švankmajer a boca, e com ela também comida, tem um grande significado social. De acordo com o cineasta em um programa de rádio tcheco:
“Eu […] acho que a comida é uma espécie de símbolo desta civilização consumista e canibalista; que devora tudo antes de digeri-la e segregá-la na forma de dinheiro. É por isso que a boca é um grande detalhe em meus filmes — eu até escolho os atores com base em suas bocas e olhos. Eu considero a boca como um símbolo da agressividade desta civilização.”
Esta atitude também é evidente em seu último e provavelmente mais acolhido curta-metragem. Food (1992) mostra uma série de pessoas comendo, mas sempre em um contexto diferente. Com o filme, Švankmajer explora muitos temas, entre eles a ganância e a inveja. Mesmo trabalhando com atores humanos, ele continuou, curiosamente, usando stop motion nesse filme.
No final dos anos oitenta, Švankmajer começou a explorar longa-metragens e posteriormente deixou de produzir curtas no início dos anos noventa. Seus longa-metragens mais conhecidos incluem Alice (1988), Little Otik (2000) e Faust (1994). Hoje em dia, além de filmes, ele também se ocupa com escultura e pintura. Foi casado com Eva Švankmajerová até a morte dela, em 2005, e teve dois filhos. Jan Švankmajer vive hoje em Knovíz, em um vilarejo fora de Praga.
*Sobre o autor: Henrique Haag é estudante e fascinado pelo cinema, especialmente quando o cinema tem uma implicação política. Ele também gosta de aprender sobre outras culturas e mentalidades através do cinema. Ele vive na região de Zurique, Suíça.
Referências:
Kammarspel. 2018. https://sv.wikipedia.org/wiki/Kammarspel
Freedom is becoming the only theme: An Interview with Jan Švankmajer. Nandita Kumar. 2010. https://nanditakumar.com/jan-svankmajer-interview/
The 10 best animated films of all time. Terry Gilliam. 2001. https://www.theguardian.com/film/2001/apr/27/culture.features1
Jan Švankmajer: Life through a surrealist prism. Vojtěch Pohanka e Martina Schneibergová. 2021. https://english.radio.cz/masters-czech-animated-film-8710154/4
ATHANOR Contact. http://athanor.cz/index.php?option=com_content&view=article&id=23&Itemid=120&lang=en
Imagem: Darkness, Light, Darkness. Dir. Jan Švankmajer. 1989. https://www.youtube.com/watch?v=1THMc9g5SaU&t=83s