Vencedor do Prêmio do Público de Melhor Ficção Internacional na 47ª Mostra, La Chimera explora a clandestinidade da memória e o papel da fantasia no momento de amarrar – ou soltar – as pontas da história
Carolina Azevedo
Em que momento um objeto deixa de ser sagrado para uma geração e se torna uma simples testemunha do passado? Para os ladrões de túmulos de La Chimera, o único valor das relíquias fúnebres dos Etruscos é o de colocar a comida – e a bebida – na mesa. O grupo de desajustados liderado pelo personagem do inglês Josh O’Connor resgata a Itália construída pelo neorrealismo de Rossellini e Visconti: em uma pequena cidade rural à beira do mar Tirreno, os ladrões tentam sobreviver com a pouca renda que a quimera de Arthur (Josh O’Connor) lhes proporciona.
Como um oposto exato da Cabíria de Fellini, ao retornar à sua moradia improvisada entre os morros e a vegetação seca do mediterrâneo, após um período na cadeia, Arthur – que é dotado da capacidade mística de localizar tumbas enterradas – se vê desinteressado pela alegria e pela festividade de seus colegas. No realismo fantástico de Alice Rohrwacher, essa Itália, que parece ter pouco mudado desde o fim da Segunda Guerra, ganha cores novas: entre os prédios desbotados, os azulejos quebrados e as ruas empoeiradas, os dois estrangeiros que protagonizam a cena representam o desejo de uma nova geração em meio a um continente que envelhece.
Ao lado de O’Connor, Carol Duarte representa uma Itália que é escrava da aristocracia decadente. O trocadilho dá nome à jovem imigrante que trabalha de graça para Flora (Isabella Rossellini), senhora rica abandonada por suas filhas em um casarão de estilo clássico da velha riqueza europeia. A Itália de Carol Duarte, além de apaixonante em sua bondade com o protagonista carrancudo, oferece a crítica à diferença de classes que Rohrwacher já havia explorado no célebre Lazzaro Felice. Apesar de simplista, a imagem de contraste entre exploração e decadência é bem pintada na casa, cujas paredes adornadas descascam em flores mortas, e nas roupas encardidas da senhora que a habita.
De volta à quimera de Arthur, Rohrwacher explora a tendência do cinema contemporâneo de misturar mídias para construir a magia do filme. Na base da filmagem, o 35mm dá vida às cores da folia de hoje e de ontem – com destaque para a beleza iconográfica das pinturas etruscas que apresentam o filme. É no super-16, porém, que a densidade narrativa dos lampejos quiméricos do protagonista são sintetizados, “como uma escritura mágica que nos insere diretamente no coração da ação,” define a diretora. Portanto, o filme se constrói imageticamente como um mosaico: a imagem desacelerada, acelerada, fixa, cantada ou desaparecida.
A primeira imagem desse mosaico é justamente a escuridão, em que os sons do mar, do verão, e, enfim, a voz de uma garota emergem antes da cena que os produz. A garota é a chave do mistério dissoluto de La Chimera: Beniamina, a amante desaparecida de Arthur e filha de Flora, a qual ambos aguardam em desespero silencioso. A linha vermelha de seu vestido costura a trama e guia, de longe, a conduta do protagonista, que, em virada moral previsível, percebe que as relíquias que garantem seu sustento de fato não foram feitas para os olhos verem.
Do fascinus que os ladrões guardam no carro à grande estátua que tentam vender para a burguesia desatenta, todas as relíquias que conhecemos – nos grandes museus, nas coleções privadas e mesmo nas pequenas lembranças achadas ao acaso – foram roubadas. Como em Sicilia! de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub, La Chimera explora a clandestinidade da memória e o papel da fantasia no momento de amarrar – ou soltar – as pontas da história.