Destrinchando ferramentas de construção de discursos, Mark Cousins esvazia estratagemas de manutenção de discursos maléficos a partir da ressignificação de olhares e registros
Davi Krasilchik
Um zoom in focaliza o espaço negativo entre Donald Trump e um adorno da sala de entrevistas. Filmada por cima da tela de um televisor, essa escolha revela a granulação típica de uma imagem digital, compartilhando os ruídos da fala do ex-presidente estadunidense. Reconhecido por um trabalho que se assemelha ao de um cientista maluco, esse corte antecipa a assinatura de Mark Cousins em Marcha Sobre Roma (2022), introduzindo o seu discurso a respeito da opacidade daquilo que se enxerga.
O documentário toma o italiano A noi! (Umberto Paradisi, 1922) como fio condutor, destrinchando seu cunho propagandístico como consequência da ascensão de Benito Mussolini. A produção em questão acompanhava o evento homônimo como estratégia de engrandecimento do Dulce. Não há descompasso algum entre a inflamação política e o pleno conhecimento linguístico dominado por Cousins. O cineasta utiliza a Sétima Arte em seus elementos mais cartesianos para destruir a sua apropriação perversa conduzida pelos fascistas, suspendendo os ângulos de câmera e demais escolhas de mise en scéne para pensar a maleabilidade do visível.
Da chuva que aconteceu no dia da tal marcha – registrada em câmera contra a vontade dos idealizadores – que os defensores do regime acreditavam enfraquecer a sua imagem, ao empréstimo de artifícios utilizados por Leni Riefenstahl, o estratagema de escolhas e os significados imbuídos a elas são deixados às claras. A ideia do documentarista é denunciar uma plasticidade de manipulação, pautado pela ontologia do imagético enquanto recorte de uma realidade, mediada pela limitação dos pontos de vistas, e muito distante de representar o todo.
Nesse sentido, são muito felizes as justaposições entre passado e presente, nas quais Cousins lê um espaço de faces opostas, posicionando suas lentes em eixos contrários aos eleitos para filmar as propagandas levianas da época. Sua bagagem de outros arquivos históricos introduz outros paralelos com a contemporaneidade, remontando simbologias maléficas que se esvaem para além de arestas plásticas de um filme e se inscrevem em novos tempos.
Durante o processo, planos abertos questionam a naturalidade com a qual pedestres e a morfologia de certos monumentos se impõem em cada plano. Seria tudo uma grande encenação? No exercício do olhar, tudo se baseia em opções, e existem diversas perspectivas para se analisar determinado elemento. O único núcleo ficcionalizado do longa complementa bastante esse ideal.
Interpretada por Alba Rohrwacher, uma personagem é filmada em estúdio, sobreposta a um fundo mediado pelas imagens de um projetor. Existe um flerte com esse meandro entre a essência de um acontecimento e a sua própria artificialidade, mas que aqui se ressignifica pela inscrição de um tipo de nova autoria. Ao reservar aos minutos finais uma longa sequência em que acompanhamos outras cenas de A noi!, no fundo da tela, sob um deformador desfoque, Cousins extrai o sentido inicial daqueles registros.
Ele proíbe as devastadoras intenções do material, lhe autorizando representar as ruínas de um projeto hegemônico que veio ao fracasso. Marcha Sobre Roma traz algo semelhante em uma passagem em que Cousins costura diversos trechos de filmes sobre a guerra que desembocam em cenas de dança. Passagens em que a dor e o sofrimento acumulados na reconstituição fílmica de antigas épocas se convertem em sensorialidade; se transformam em potência e fruição. Na liberdade do olhar, devemos nos atentar para as maneiras como estabelecemos nossa relação com o mundo, buscando a beleza da emancipação desse exercício.