Matias Mariani: ‘O cinema é um coletivo de pessoas falando de outro coletivo de pessoas’

Matias Mariani, diretor do longa ‘Cidade Pássaro’, compartilha em entrevista exclusiva à Vertovina suas considerações sobre a cidade palco de seu filme: São Paulo.

Por Íris Chadi*

Cidade Pássaro conta a história de Amadi, um músico nigeriano, que vai a São Paulo para tentar encontrar seu irmão, Ikenna, que desapareceu na cidade. Nesta busca, a cidade deixa de ser apenas um ambiente, e passa a ser um personagem decisivo para o arco de Amadi. Matias Mariani, diretor e um dos roteiristas do filme, compartilha com a Vertovina em entrevista exclusiva suas reflexões sobre Cidade Pássaro e sobre São Paulo.

VERTOVINA: Apesar da cidade de São Paulo ter um importante destaque em ‘Cidade Pássaro’, as reflexões sobre a cidade não são explícitas. Qual a importância que vocês buscaram atribuir à cidade de São Paulo no roteiro?

MATIAS MARIANI: A ideia do filme nasceu, de algum modo, de um desejo de pensar sobre São Paulo. Eu estava morando fora, nos EUA, e sentia muita falta daqui. Como estava, na época, estudando cinema, senti que fazia todo sentido expressar essa saudade como filme. Depois, ao longo dos anos, muitos outros desejos foram se acoplando a esse primeiro, mas ele sempre teve um caráter central no nascimento do filme. São Paulo como uma cidade diversa, viva, muitas vezes violenta e sempre um tanto incompreensível. Acho que essas eram as qualidades mais intencionais que tentamos atribuir à cidade ao longo do processo de escrita, filmagem e edição.

V: Quais foram as principais inspirações para a roteirização de Cidade Pássaro? E as principais referências visuais?

MM: O roteiro foi construído a muitas mãos e, por isso, as inspirações foram diversas. Da minha parte sempre pensei muito em filmes nos quais a cidade é um personagem importante, tais quais Na Cidade Branca, do Alain Taner, Il Posto, do Hermano Olmi, São Paulo S.A. do Person, todos filmes que adoro. Visualmente, enquanto enquadrava o filme, me vinha sempre à cabeça as fotos de um fotógrafo que registra muito o centro de São Paulo, Mario Rui Feliciani. Léo Bittencourt também trouxe muita coisa, entre eles um filme avant-garde japonês chamado (em inglês) Heroic Purgatory, de Yoshishige Yoshida, que influenciou como fizemos os (poucos) movimentos que o filme tem. Algumas influências ficaram entre o visual e o roteiro, como por exemplo o Idrissa Ouedraogo, um cineasta que eu admiro muito; o último plano do filme dele Yaaba é quase idêntico ao nosso primeiro plano, duas crianças correndo em direção a tela.

V: Como você vê a convivência de pessoas de diferentes nacionalidades na cidade de São Paulo e como buscou representar esta sua visão no filme?

MM: Isso foi das dimensões mais interessantes do filme. Ao mesmo tempo que estávamos retratando a reação de um estrangeiro recém-chegado em São Paulo, boa parte da equipe estava vivenciando essa mesma experiência, sejam verdadeiros estrangeiros como a roteirista Chika Anadu, os dois protagonistas OC Ukeje (Amadi), Chukwudi Iwuji (Ikenna), o trilheiro Flemming Nordkrog, sejam só pessoas que só não eram da cidade e que a olhavam com um olhar fresco, como o fotógrafo carioca Léo Bittencourt. Pedi para o OC Ukeje, especialmente, ficar muito atento às primeiras impressões dele na cidade, assim que ele chegasse, e trouxesse isso para o modo como iria interpretar Amadi. Acho que isso foi algo importante para o filme.

V: Cidade Pássaro tem uma perspectiva antropológica, devido ao ponto de vista estrangeiro do personagem principal. Com uma sala de roteiro tão diversa, como foi o processo de construção da perspectiva de Amadi diante de São Paulo?

MM: Foi bem rico, por vezes difícil , mas sempre muito recompensador. Depois de fecharmos o primeiro tratamento, que escrevi junto com a Maíra Bühler, entendemos rapidamente que não tinha como fazer esse filme sem contribuições de muitos lados. Os personagens e o que eles viviam eram muito distantes das nossas experiências. Como um homem branco paulistano que fala português, eu enxergo uma cidade bem específica, mais aberta, receptiva e compreensiva do que a que é vista pelos olhos dos nossos personagens, tanto estrangeiros, como Amadi e Ikenna, quanto paulistanos também, como a Emília.

Nesse sentido a colaboração da Francine Barbosa, uma jovem roteirista paulistana negra, foi essencial, trazendo pro filme essa São Paulo, a São Paulo dos preconceitos e das exclusões, às vezes pouco visível pra mim, mas extremamente concreta pros personagens. O mesmo pode ser dito da Chika Anadu, roteirista igbo que teve a generosidade de passar 1 mês em São Paulo trabalhando no roteiro, e que se apropriou dele de uma forma marcante.

Outras contribuições foram importantes em esferas mais filosóficas e de gênero, como o Roberto Winter, que além de roteirista é físico, e que por isso me ajudou a construir o universo do Ikenna e fundamentar o filme mais profundamente numa tradição de ficção científica, e a Julia Murat, que me ajudou muito na estruturação do filme como um todo.

V: São Paulo já foi palco de diversas histórias para os cinema: São Paulo sinfonia da metrópole, Filme Demência, O Bandido da Luz Vermelha, Sinfonia da Necrópole… O que você acredita que Cidade Pássaro traz de diferencial quanto à representação da capital paulista?

MM: São Paulo é múltipla, então acho que sempre parece que há algo faltando na forma que ela é representada nos filmes. Acho que deve ser isso que gera um interesse tão grande de diretores diferentes em falar sobre ela. Além disso, essa multiplicidade é muitas vezes contraditória: é rica e miserável, cosmopolita e extremamente local, mitifica o seu passado de ser construída por migrantes, do Brasil e do Exterior, mas ao mesmo tempo trata pessimamente os recém-chegados… Acho que isso tudo faz com que São Paulo seja uma fonte inesgotável de imagens, sons e histórias.

V: Neste sentido, o que é, para você, o cerne, o essencial, da experiência paulistana?

MM: Acho que a transitoriedade em si. É uma cidade que está sempre mudando, a padaria que você frequenta vai fechar amanhã, o casarão vai virar um estacionamento, e a construção do prédio vai ser interrompida pela metade. Esse desapego morfológico que a cidade impõe à gente acho que é o que tem de mais genuinamente paulistano na experiência da cidade.

V: E o que São Paulo tem de mais cinematográfico?

MM: Difícil… Eu gosto muito do desenho das avenidas principais, como a Nove de Julho e a Pacaembu que, por terem sido feitas em cima de rios, tem um desenho bem orgânico… Gosto também como os rios Pinheiros e Tietê às vezes geram uns horizontes inesperados, numa cidade onde eles são tão raros: no ‘Cidade Pássaro’ acho que conseguimos captar isso um pouco com um plano do Jockey. E gosto muito do centro, dos prédios de épocas diferentes lado a lado, do clima confuso e apressado.

V: Ao final do filme, vemos uma divergência de idiomas: diversas pessoas se comunicando, cada uma em seu idioma. De certa forma, você acredita que São Paulo seja um ambiente propício para a incomunicabilidade?

MM: É uma interpretação possível. Dizendo mais ou menos a mesma coisa com um viés mais otimista, talvez o ambiente de São Paulo, justamente por ser tão diverso e ruidoso, gere uma preferência por comunicações que aconteçam na margem da linguagem: a linguagem corporal, a entonação de uma voz, pequenas expressões e gestos. É assim que você se comunica com um estrangeiro, e em São Paulo de certo modo somos todos estrangeiros.

V: Como você acredita que o cinema tem o potencial de representar e discutir as cidades?

MM: A arte surgiu antes da cidade, mas desde que a cidade surgiu, acho que as duas coisas andam muito juntas… Não só o bom cinema, mas a boa arte como um todo, se torna um processo de auto-reflexão, tanto individual quanto coletiva, e na minha opinião a forma mais expressiva que já tivemos de coletividade (mais que família, mais que clãs, mais que países) é a urbe. Na cidade é onde somos verdadeiramente forçados a conviver com o diferente, e desenvolver mecanismos para tal, e quem sabe até a encontrar prazer nesse convívio… E a arte nos ajuda a refletir sobre isso, seja através de um filme, um livro, uma pintura. Acho que o que o cinema tem de particular é uma grande afinidade em descrever processos coletivos, em descrever a “indústria” (no sentido de organização) humana, através de processos que tendem a parecer mais tácteis do que os de outras mídias. Na essência, o cinema é um coletivo de pessoas falando de outro coletivo de pessoas, com sempre uma grande intersecção entre esses dois grupos. E nesse sentido é muito apropriado para falar da cidade.

V: Seu novo filme, ‘Cora’, está para ser lançado no Festival do Rio. Nos conte mais sobre este longa.

MM: Cora é um filme com uma história bem única, nasceu quando um amigo, Gustavo, leu um romance escrito pela minha mãe, Beatriz Bracher, chamado Antônio, e disse que via ali um filme, mas não bem um filme de ficção, um documentário. Conversamos muito sobre isso ao longo de dias, e decidimos embarcar juntos nessa ideia. Aos poucos, o filme foi se distanciando um pouco do livro, até que decidimos chamá-lo de Cora, e considerá-lo um filme-resposta, não bem uma adaptação.

Apesar do tom documental, o Cora é todo ficcional e se passa num futuro próximo, no qual o Brasil é um país em ruínas. A Cora mesmo é uma dinamarquesa, encontra um filme inacabado que a liga a seu pai, um brasileiro chamado Benjamin. No material, Benjamin investigava a história de seus pais (avós de Cora): Teo, que enlouqueceu e morreu, e Elenir, uma figura cheia de mistérios que ele, Benjamin, nunca chegou a conhecer. Na medida em que a investigação avança, a história dessa família vem à tona. E vemos tudo, agora, por esses olhos dinamarqueses.

Gosto muito desse limite entre Ficção e Documentário, e Cora explora isso, de uma forma bem fluida e diferente do ‘Cidade Pássaro’. Acho que fala muito sobre as famílias da elite paulistana, e como elas observaram a degradação do brasil nos últimos anos, sem fazer nada (o que é de certo modo fazer alguma coisa).

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‘Cora’ de Matias Mariani e Gustavo Rosa estreia na Mostra Competitiva do Festival de Cinema do Rio de Janeiro, no dia 13 de dezembro, às 20:30, no Cinépolis Lagoon.

*Sobre a autora: Íris Chadi é estudante de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero, cineasta independente e roteirista de profissão. No cinema, seus principais interesses se concentram no surrealismo, no medo e em novas formas de se pensar e fazer a sétima arte.