A Recriação de retratos femininos destruídos e a busca de catarse e amor na arte
Por Matheus Fortunato*
Maria Klonaris e Katerina Thomadaki têm um longo histórico de colaborações cinematográficas, desde longas-metragens, curtas-metragens e diversos outros experimentos audiovisuais. Isto se deve principalmente ao fato das duas diretoras terem estudado na mesma Escola de Artes em Atenas. Há um impacto explícito no trabalho de Maria e Katerina causado por figuras femininas da cena experimental cinematográfica, como Germaine Dulac e Maya Deren, obviamente pela contribuição gigantesca para a cena experimental dessas duas diretoras por volta da década de 60. Maria e Katerina defendiam a utilização do cinema experimental, ao invés do cinema industrial, como campo possibilitador de transgressão e reflexão crítica sobre normas, seja de audiovisual, identidade ou gênero.
O que elas explicam em um texto de 1977 que a narrativa do cinema industrial é apenas uma estrutura de dependência que o mercado provê para o mainstream, sendo assim o cinema independente não tem nenhuma obrigação de seguir as normas cinematográficas do cinema corporativo industrial. Dado argumento é perfeito, visto que o cinema corporativo do século XXI é controlador e o processo criativo é prejudicado, sendo assim há uma dificuldade maior para qualquer desenvolvimento reflexivo, não que o cinema industrial deva ser assim, só não está de acordo com o campo artístico que se assemelha a proposta artística das diretoras.
Visto isso, o trabalho de Maria e Katerina está baseado na criação de uma ponte entre o cinema de avant-garde e uma reflexão política de gênero.
O OLHAR DO ARTISTA E DO ESPECTADOR COMO FORMA DE TRANSGRESSÃO
O trabalho de Maria Klonaris e Katerina Thomadaki se preocupa principalmente com o olhar, muitas vezes podendo ser considerado até anti narrativo por não se ater, e até recusar, às necessidades processuais pré programadas na produção fílmica. O significado da representação fílmica está totalmente voltado para a imagem, e eventualmente, para o som.
“A tirania da normalidade se exerce primeiramente através do olhar. O olhar é treinado para buscar a norma, qualquer que seja essa norma, e para decodificar os sujeitos em termos de sua conformidade com ela.”¹*
Desta forma, há uma tendência no trabalho de Maria e Katerina à transgressão, ou seja, ter como objeto corpos dissidentes, sujeitos excluídos como centro do universo de produção das cineastas. Um dos maiores interesses das diretoras é colocar em cheque o olhar do próprio espectador, ao mesmo tempo em que esta confrontação proporciona uma liberdade ao render uma reflexão ao espectador.
Em 1992, Maria Klonaris e Katerina Thomadaki dirigiram L’Ange Amazonien, um documentário que tem como figura central Lena Vandrey, artista, poetisa e escultora que remete muito à proposta artística das duas cineastas.
LENA VANDREY COMO FIGURA DISSIDENTE EM L’ANGE AMAZONIEN
Nascida na Polônia, Lena Vandrey foi uma artista que esteve muito próxima da chamada “Arte Bruta”, considerada talentosa e genial desde a infância, a futura pintora e poetisa já desenhava e escrevia poemas aos 2 (dois) anos de idade, teve anos felizes na Alemanha enquanto ainda era criança e depois mudou-se para França, primeiro Paris e depois Provença. A obra de Lena consistiu em textos, desenhos, pinturas, esculturas e coleções, sempre buscando uma ligação direta com a cultura feminina em todo aspecto possível.
Em L’Ange Amazonien, um aspecto que se destaca é a figura mitológica, muitas vezes pela imagem, às vezes pelo som e outrora pelo discurso de Lena. Ou seja, o discurso da mitologia em L’Ange Amazonien não está apenas na narrativa de Vandrey, pelo contrário os planos de Maria e Katerina imprimem um clima fantasmagórico que acompanha o discurso de Lena assim que o filme se sucede. Não apenas em questão de planos, mas toda ambientação cinematográfica do documentário é sobre essa contemplação da fantasia aliada ao retrato dos espaços de Lena Vandrey.
Toda essa contemplação pela fábula é potencializada pela imagem, principalmente pelo trabalho da artista estar muito ligado à relação do feminil com todo o universo mitológico criado pela arte plástica da própria Vandrey, isso é reafirmado em vários segmentos em que Lena tem a imagem do feminino grego como objeto artístico.
Outro aspecto que toma forma constante é a busca de catarse por meio da arte. Como foi mencionado no início do texto, o projeto artístico de Lena remete muito à obra de Maria e Katerina, principalmente por Lena se tratar de um “Corpo Dissidente”, termo que vai ser discutido no próximo parágrafo. A artista se vê às margens da norma artística, por mais que ela esteja categorizada como uma figura da arte bruta, ela concorda que sua arte é, em até certo ponto, próxima da arte bruta, mas em um todo artístico ela também não se encaixa.
Um termo utilizado por Klonaris e Thomadaki em um texto de 2002 foi o “Corpos Dissidentes”, o qual foi utilizado para intitular o mesmo texto. Nele, elas descrevem o termo como oposição a qualquer ideologia sócio-cultural baseada na exclusão. Ou seja, tendo como base de seu universo objetos excluídos, onde a figura de Lena, rigorosamente, se encontra.
“Os corpos dissidentes são transgressores em relação a uma norma. Uma norma implica uma ideologia sociocultural baseada em exclusão. Assuntos excluídos estão no centro do nosso universo.”¹*
Sendo assim, a dinâmica de corpos dissidentes desenvolvida por Maria e Katerina está exemplificada em L’Ange Amazonien na figura de Lena Vandrey, onde a personagem menciona que buscou atenuar a solitude em diversos momentos pela arte, não apenas isso, mas Lena conseguia encontrar amor em todo o seu projeto artístico.
Por mais que seja um documentário e o potencial do filme se encontra nos relatos artísticos e poéticos de Vandrey, o que mais se destaca em L’Ange Amazonien é como a representação de Maria e Katerina se relaciona com a obra de Lena Vandrey. Isto é, a maneira com que o filme encontra seu ápice no encontro de dois universos diferentes. Tendo um cinema político bastante ativo e com foco em subverter o olhar do público sobre a figura da mulher, identidade mental e ao conceito de normas cinematográficas e visuais, Maria e Katerina foram figuras importantíssimas para o cinema experimental e para o entendimento da importância da subversão do olhar no cinema.
*Sobre o autor: Matheus Fortunato é formado em Administração, é apaixonado por cinema experimental e arte em todas as suas formas. Interessado pela maneira com que o cinema possibilita cada pessoa poder experimentar e produzir arte de diferentes meios.
Referências:
¹Klonaris, M. and Thomadaki, K., 2002. Dissident Bodies: Freeing the Gaze from Norms. In Body and Representation (pp. 143–157). Disponível em: https://link.springer.com/chapter/10.1007/978-3-663-11622-6_13