Novo filme de Ryusuke Hamaguchi é conto moral engraçado e assustador sobre a destruição do meio ambiente e o papel do ser humano nessa violência
Eduardo Lima
Cinema é técnica. Arte industrial por definição, a máquina subjuga a realidade para formar um novo real. Aquilo que vemos na tela é a dominação da natureza: o mundo recortado, reimaginado e construído de acordo com a vontade do cineasta.
A subjugação industrial da natureza, indo além do cinema, leva não só a um achatamento do indivíduo, mas também à destruição do mundo natural e, com ele, aquele animal que há milênios teima em tentar se separar do resto do planeta: o ser humano.
A crise climática e ambiental produzida pelo triunfo da técnica sobre a natureza é o ponto de partida de Ryusuke Hamaguchi em seu novo filme, O Mal Não Existe, que ganhou o Grande Prêmio do Júri no 80º Festival de Veneza. O diretor japonês abandona as grandes cidades que serviram de paisagem para seus filmes anteriores – Tokyo, Hiroshima, Osaka – para se concentrar na aldeia rural de Harasawa, há algumas horas de carro da capital do país, com cerca de 6 mil habitantes.
Em Harasawa, a população tem sua tranquilidade bucólica interrompida por uma agência de talentos que, para se aproveitar de subsídios do governo relacionados à pandemia, decide desbravar novos mercados com um campo de glamping. Nova febre no interior do Japão (e do Brasil, com opções em Monte Verde para os interessados), o misto de glamour com camping é, nas palavras de uma das personagens do filme, um hotel com o tema acampamento. Ao invés de viver a experiência completa de acampar, em conexão com a natureza, turistas podem se isolar da natureza em seu conforto dentro da própria floresta.
O projeto de glamping tem diversos erros e perigos ambientais óbvios, escrutinados e ridicularizados pelos habitantes da aldeia em uma cena hilária, onde as preocupações honestas dos moradores contrastam com a hipocrisia empresarial dos representantes da agência de talentos/empreiteira de camping de luxo. Os funcionários cosmopolitas podem até se sentir tocados pelas reclamações da população de Harasawa, mas precisam voltar ao trabalho em nome de um CEO que distorce os fatos sem nenhum peso na consciência. O capital define o que é real.
A diferença entre cidade (e, com ela, seu sistema econômico e de valores) e campo é explícita. A câmera foca em personagens não-humanos, como árvores, pássaros, cervos e riachos, com o mesmo cuidado que acompanha as personagens humanas. Saindo de um filme vencedor do Oscar de Melhor Filme Internacional (Drive My Car) alicerçado sobre longos passeios de carro, agora Hamaguchi escolhe filmar automóveis como se pelo ponto de vista de uma câmera de ré: você não vê o carro, a máquina, e sim a paisagem, que é mais importante.
São muitos os momentos onde parece que o espectador enxerga as personagens humanas pelo ponto de vista das árvores. Elas são os primeiros seres vivos a aparecerem na tela. O foco mudou, e essa mudança é acompanhada por uma linda trilha sonora composta pela cantora-compositora Eiko Ishibashi. O ponto de partida para o filme foi a música de Ishibashi, mas a trilha é usada poucas vezes, com uma contenção que só realça seu poder emocional quando aparece nas cenas na floresta, filmadas de forma quase documental, valorizando a luz natural. Em contraponto ao estereótipo da “floresta assombrada” do cinema de terror, na câmera de Hamaguchi a paisagem natural não oferece perigo ao ser humano. O mal não existe entre as árvores.
O mesmo não se pode dizer do ser humano, que oferece um perigo verdadeiro à paisagem. Isso se mostra não só no bizarro projeto de glamping, como na caça de animais que está presente de forma implícita durante a maior seção do filme antes de voltar para assombrar o espectador. Não é a natureza, e sim a ação do homem em relação a ela, que traz o perigo.
Os moradores da aldeia representam uma proposta de lidar com a Terra diferente da dos empreendedores e caçadores que acreditam que o mundo tem apenas uma utilidade: servir aos seus interesses privados. O principal exemplo dessa relação respeitosa com a natureza é Takumi (interpretado por Hitoshi Omika, em seu primeiro crédito como ator), o pai solteiro da pequena Hana. Ele é uma espécie de faz-tudo e liderança comunitária e, como todos no vilarejo, é um colono, alguém que chegou à região de Harasawa para fazer sua vida, construir sua família e explorar o meio ambiente. A palavra “exploração” talvez pudesse ser melhor substituída por “fruição”, que não carrega o mesmo sentido pejorativo e traz o verdadeiro propósito da relação dos habitantes de Harasawa com a natureza: viver uma vida boa, em parceria com a floresta, usufruindo com equilíbrio.
Em outra cena que faz rir em voz alta, não exatamente algo comum em filmes de Ryusuke Hamaguchi, um dos funcionários da empresa responsável pelo empreendimento de glamping comemora depois que Takumi o ensina a cortar madeira. Pode parecer simples, mas o ato muda a postura do homem da cidade pelo resto do filme. Ele percebe sua falta de contato com a natureza. Enquanto trabalha a semana inteira em um escritório, servindo a um conceito quebrado de utilidade, existem pessoas vivendo de forma verdadeiramente útil, em parceria com a natureza.
Um dos moradores mais velhos de Harasawa adverte os empreendedores: o que acontece no topo afeta quem está embaixo. Se há poluição no topo de um curso de água, as pessoas que vivem no pé da montanha, mesmo que não tenham feito nada de errado, vão sofrer com as ações de seus vizinhos do alto. Aqui, a eco-parábola de Hamaguchi, como chamou Peter Bradshaw no Guardian, encontra sua metáfora central: as ações tomadas pelas pessoas no topo de cadeias de comando e grandes empresas afetam, principalmente, aqueles que estão embaixo. Vivemos uma crise climática causada, em sua maior parte, pelos países ricos do Norte global. Não é o que parece quando vemos que quem mais sofre com ela são os países subdesenvolvidos, cuja exploração possibilitou o crescimento econômico desenfreado do “primeiro mundo” que nos trouxe até esse ponto de não-retorno.
“O Mal Não Existe”, título enigmático sem relação explícita com a trama do filme, serve como chave interpretativa para o conto moral do autor japonês. O mal realmente não existe na floresta, mas a ação humana traz maldade que atinge a todos, principalmente os mais pobres e vulnerabilizados. A injustiça da crise climática afeta mesmo aqueles que não contribuíram para ela. O fim, em tom mais sombrio do que o resto do filme, posa a pergunta: Quem está no alto vai continuar usando a água sem se importar com os que vão bebê-la embaixo? Vamos continuar tendo medo da floresta, ou vamos direcionar nosso medo para quem a destrói e, fazendo isso, nos destrói junto? Vamos deixar o futuro morrer?
Eduardo Lima é amante amador de cinema e repórter no Le Monde Diplomatique Brasil.