Como “O Som Ao Redor” explora, além do som, as relações de poder da colonização, as clássicas histórias de vingança sertaneja e a mentalidade de superioridade da atual classe média
Por Gabriel Oliveira*
“O Som ao Redor” (2012), de Kléber Mendonça Filho, começa com imagens que remetem à tradição colonial; são sujas, cruéis, em preto e branco, ultrapassadas. Logo são interrompidas dando espaço às cenas do atual cotidiano e percebemos que pouco mudou nas relações de poder. A premissa é um tanto quanto simples, um pequeno grupo de forasteiros chega e oferece um serviço de segurança particular a uma rua da zona sul recifense, gerando uma série de tensões com uma família poderosa da região. O longa é dividido em três partes: “Cães de Guarda”, “Guardas Noturnos” e “Guarda Costas”.
A primeira tem como tema central a chegada dessas figuras à dinâmica já consolidada das ruas. A linguagem, em especial o som, diz muito sobre a trama que se desenvolveria em segundo plano. O homem serrando a grade, os latidos do cachorro e o vendedor ambulante de CDs são apenas alguns dos recursos usados para representar o desconforto causado pela chegada do grupo. O barulho age em conjunto à imagem na criação do incômodo, se o primeiro é rítmico e agoniante, no segundo são utilizados de planos abertos que ocasionalmente adotam um caráter labiríntico, quase como prisão simbólica de uma específica bolha social que pretende distanciar-se do restante. Todavia, os sons dão uma trégua apenas nos momentos em que as personagens estão dentro de casas, apartamentos ou carros, reforçando a ideia central do poder econômico, social e ideológico que a propriedade desempenha na constituição do imaginário brasileiro.
Durante a parte intermediária, “Guardas Noturnos”, a trama se desenvolve pela possibilidade, contudo, a questão aparece para além da comunicação verbal, naquilo poderia ter sido expresso. Se por um lado vemos o filho da empregada doméstica Mariá, Jodiclei, contar exausto sobre seu trabalho, por outro, vemos o patriarca da família, Francisco, proteger seu neto, Dinho, através do discurso de intimidação aos guardas, das denúncias relativas ao seu roubo.
As falas de Francisco e Jodiclei são diametralmente opostas: enquanto um faz o uso de seu capital simbólico para proteger Dinho, o outro sequer apresenta disposição para desenvolver algo além do cordial nas conversas, preferindo permanecer em silêncio. Mas por que um demonstra no olhar um sentimento de ‘ainda dever algo’, como se ele seguisse à procura da segunda alforria, enquanto o outro nem sequer sofre as consequências de seus delitos? Por que vemos nitidamente, em apenas em um dos jovens, trejeitos inseguros e apáticos? Dadas as suas condições, quais foram as possibilidades apresentadas pela vida a eles?
Em “Guardas Costas”, a violência se torna performática. Ela assume o papel de permitir que o silêncio persista, sendo instrumentalizado direta ou indiretamente pelos que ocupam os espaços de privilégio. A dualidade dessa dinâmica atravessa o personagem de Francisco: seu apartamento é preenchido por símbolos católicos e artigos de luxo, os quais servem na composição como elementos que delimitam determinada classe e ambiente, além de grades na entrada do prédio e do próprio apartamento que reforçam a noção de segregação. Vemos esse caráter velado da violência no seu convívio com suas empregadas.
Há também, para além do que o filme projeta, a necessidade de se estabelecer uma diferenciação entre patrão e empregado, como se suas funções sociais não os permitissem fazer diferente. As vestimentas padronizadas e confinantes ilustram a hierarquia estabelecida. Contudo, a violência se dá pelo silêncio — quase não há diálogo entre as partes, mas, nessas raras ocasiões, a impessoalidade e o distanciamento enorme entre as partes prevalece.
Além disso, o filme faz questão de contextualizar o ambiente de sua narrativa, principalmente por meio dos enfoques em placas de carro e das ruas. A importância desse hábito se dá através de sua ligação à história contada ‘por debaixo dos panos’. Francisco, por exemplo, é nada mais que um arquétipo do grande latifundiário que faz do uso constante da violência como um mecanismo de conservação do seu poder pela e para a terra. De “Vidas Secas” a “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, a concepção limitante do que seria o Nordeste foi projetado para todo o Brasil — e exterior — de modo a homogeneizar a cultura em detrimento de um determinado tipo de ficção, as histórias de vingança sertaneja.
O que “O Som ao Redor” faz é reconhecer seu peso, ao passo que as enterra enquanto tradição. Os elementos constituintes desse ‘gênero’ não deixam de estar presentes no filme, no entanto, a inovação acontece pelo deslocamento do rural ao urbano. Se a temática continua sendo a vingança movida pela desigualdade, aqui ela não se dá por facões ou rifles e nem ocupa ambientes desolados pela seca, mas sim por intermédio de celulares e da paisagem de prédios da atual Recife. Essa reconfiguração, porém, não é se esgota como um artifício de storytelling ou de um ambíguo saudosismo, mas representa algo maior: o que Kléber Mendonça Filho faz com as narrativas tradicionalmente atribuídas ao Nordeste, o capitalismo também pôde fazer, transpondo essas relações de poder da aristocracia rural ao ambiente urbano burguês.
A modernização técnica do latifúndio e a expansão agro-mercantil do Brasil no período pós 64 não se efetuou de forma harmônica e tampouco se deu por vias pacíficas. Sintomático disso é uma espécie de prenúncio que traduz esse período, quando, na fazenda da família, Francisco, João e Sofia vão tomar um banho de cachoeira e subitamente a água cristalina, que despencava violentamente sobre suas cabeças, torna-se sangue. Na cena, o enquadramento foca em João, aqui, despossuído de qualquer individualidade, mas simbolicamente aproveitado enquanto representante mais novo da linhagem que herdará frutos de um império construído à base de litros de sangue indígena, escravizado e assalariado.
Outro aspecto, este mais em voga no filme, é o tédio e a incomunicabilidade que persegue essa classe média presa entre a ilusão de pertencer à classe dominante e o pavor de se reconhecer enquanto dominada. Cabe retomar o personagem de Bia, interpretado por Maeve Jinkings. Para além das questões patriarcais que a cercam, ela é vista quase que sempre de dois modos: sozinha ou olhando pela janela. De modo geral, é comum ver os personagens isolados, ora voluntariamente atrás das grades de proteção, ora sufocados pelo enquadramento nos seus apartamentinhos. A intenção por trás se torna bastante clara na cena em que a Bia repara nos filhos na aula de mandarim, ainda que a mesma não entenda o idioma. Aqui, a mãe serve como uma obstrução à comunicação entre a professora e as crianças, uma vez que diante de sua presença, as crianças, pressionadas, não focam na aula. De início, vemos o núcleo professora e filhos extremamente próximos à câmera, até que a garota começa a se desviar. Com um corte súbito, somos direcionados a uma nova dinâmica, onde a mãe, no plano central, aparece acima da filha. Há, em Bia, a personificação alegórica da autoridade, mais especificamente da autoridade aos moldes brasileiros.
Nota-se o mesmo entre João e Mariá, onde evidentemente há uma relação de poder lapidada por 300 anos de escravidão, ainda que ela seja ‘comportada’ e que haja uma aparente amistosidade entre as partes. A marginalização segue sendo o motor do Brasil, se as autoridades são carismáticas, populares, ou se permitem que o filho exausto acompanhe a mãe no trabalho, nada disso muda o estrutural — a discriminação e a segregação. Há, pois, outra semelhança entre Bia e João, ambos parecem que, naquele instante, são incapazes de estabelecer um diálogo real; como se o papel performático deles os distanciasse de uma conexão humana. Agindo tal o panóptico proposto por Foucault, o poder e controle são subliminares, implícitos, embora perceptíveis a ambos os polos da relação. um dos temas abordados no decorrer do filme; essa comunicação truncada, falha, pautada pela interferência das autoridades desenvolvidas nas esferas privadas e públicas na organização social capitalista.
Incomunicabilidade não é um tema novo no cinema, afinal temos diretores como Tsai Ming-liang e Hou Hsiao-hsien e outros nomes da tradição do leste asiático. No entanto, o modo com que ela é situada, em uma sociedade não plenamente adequada aos moldes contemporâneos da globalização, mas uma sociedade essencialmente pós-colonial, que ainda não superou seus paradigmas, é um retrato melancólico, embora fiel, do Brasil que iniciou o século XXI sem enterrar seu passado. Na segunda metade do filme, há um momento em que surgem uma série de figuras no escuro que pouco a pouco vão tomando a casa de Bia. As silhuetas são, em sua maioria, personagens masculinos negros e, embora compondo uma multidão, não chegam a ocupar a tela toda, tendendo sempre a se dispersar no ambiente ou serem ofuscados por ele. Por fim descobrimos que não passava de um pesadelo de Fernanda, filha de Bia, mas até que ponto era apenas obra da imaginação infantil?
A sequência foi construída de tal forma a confundir os limites entre real e imaginário, de modo a sugerir que essa aversão às camadas populares não habita somente num espaço inconsciente. Como é de praxe nos filmes de Kléber Mendonça Filho, a crítica à mentalidade vira-latista também está presente em “O Som ao Redor”. Durante o ligeiro aumento do poder aquisitivo da classe média nos governos petistas, criou-se uma noção de dissociação desse grupo ascendente em relação às classes subalternas, fomentando um senso imaginário de superioridade.
Daí surge a falsa necessidade de segurança, ainda que simbólica, por meio das grades, que se tornam, se levadas às últimas consequências, em instituições maiores como os guardas do filme ou as milícias cariocas. E é falsa justamente pela motivação vir da cobiça por exclusividade nos espaços de convívio, da vontade de segregar, de limitar o acesso aos ambientes. Portanto, não parece absurdo falar em alienação em “O Som ao Redor”. As personagens, embora tentem ignorar, convivem diariamente com a miséria e desigualdade, na periferia do capitalismo, seja entre Fernanda e os jovens do seu sonho ou entre João e Mariá. Diante da violência intrínseca à manutenção do sistema, as figuras se enclausuram na tentativa de se abster da realidade, ainda que não percebam que as grades, portões e muros do condomínio também façam parte do repertório de violências do qual os guardas fazem parte.
Do início ao fim, do título ao roteiro, o filme é ditado pelo som. Som esse que não é fixo nem constante, tampouco obedece às hierarquias não superadas. Ao mesmo tempo que ele dá ritmo, ele cerceia. Seu alcance atinge o jovem que se entrega ao subemprego e também o senhor de engenho. Embora incontornável, o som pode ser domado. Grades, carros, apartamentos altos e até um antigo engenho são usados como ferramentas de calar. Essa classe dita o que é som e o que é barulho. Essa classe é a que produz os mesmos sons há 300 anos. Como diz Eduardo Galeano, os ninguéns “[…] custam menos que a bala que os mata”, os mesmos também não têm nada a perder, não os resta nada além de romper com o silêncio do tiro que os mata.
Sobre o autor: Me chamo Gabriel, tenho 19 anos, e inicialmente era apaixonado exclusivamente por fotografia, até conhecer filmes que conversavam diretamente com questões que eram importantes para mim. Particularmente, vejo como magia a capacidade do cinema de traduzir em imagem e som temas que podem variar de crises pessoais até guerras. Filmes que tratam da esfera privada e como, por vezes, esta conversa com o cenário político, cultural e social estão entre os meus favoritos.