Os curtas da abertura da 27a Mostra de Cinema de Tiradentes modulam formas do cinema brasileiro contemporâneo e aquilo que se esconde para além do plano
Davi Krasilchik
Não é de agora que o chamado “Novíssimo Cinema Brasileiro” brinca com as formas de percepção do tempo. Reconhecido por suas técnicas de valorização do cotidiano em planos longos, cortes mínimos de montagem e diálogos corriqueiros, a “vanguarda” flerta com essa percepção mais natural de suas personagens, sentimentos e impressões sociais, em detrimento da progressão lógica de narrativas com um começo meio e fim. As suas lentes priorizam situações do agora, pacientes em sua manutenção sobre uma mesma imagem que representa o presente.
Inaugurando “As Formas do Tempo” – nome temático da edição deste ano do festival –, Roubar Um Plano (2024) intercala a utilização de imagens de arquivo do Capão Redondo – onde cresceu um dos dois diretores do projeto, Lincoln Péricles – com o retorno de Renato (Renato Novaes) a sua cidade natal, Contagem. Ele decide abandonar o seu trabalho em uma obra civil e mudar de vida.
O personagem passeia pela região com seu amigo Adriano, se despedindo dos mais próximos em um resgate de antigas lembranças e vivências. No processo, são sobrepostos planos em que o companheiro experiencia pequenas ações, seja ouvindo uma música ou assistindo a um vídeo cômico.
É como se o filme exigisse uma atenção parcelada, rompendo com a temporalidade mais imediata de cada quadro. Isso é reforçado na passagem em que a dupla visita a gravação realizada por um colega, em que a profundidade de campo explora dois universos, cada qual com suas próprias regras e lógicas, em simultâneo.
Esse ritmo das ações, elencadas com poucos cortes e lentes pacientes, traz uma espécie de escoamento para além do quadro, que permite aquela interação anterior com as imagens de arquivo, que colocam em questão a relação entre o espaço e o tempo. Isso autoriza uma coesão semântica com a abertura, na forma como cada fotograma representa um momento específico, paralisado no tempo, e encontra a sua totalidade no que se esgueira para antes e depois.
Talvez o recurso que melhor representa isso seja o uso dos áudios como voice over, que interrompe o acompanhamento visual da caminhada dos dois em uma calçada, por exemplo, e se mantém no registro de diversos indivíduos do Capão Redondo. Cada um ali segue a sua própria jornada, enquanto a trajetória de Renato se mantém no som, obrigando o inconsciente do público a formalizar essa continuidade.
Chama atenção na forma como entrelaça a observação paciente do corriqueiro e essa experimentação da imagem – como no plano em que um efeito inserido em pós sugere a preservação de uma imagem em uma espécie de scanner.
Por sua vez, o curta Quando Aqui (2024) também faz o papel de demonstrar a importância das imagens no além do tempo. Trabalhando com colagens inspiradas pelo quadrinho Aqui (1989), de Richard McGuire, o filme mistura imagens inéditas, planos extraídos de outros filmes de André Novais e fotos de arquivos, tiradas de diferentes épocas.
Para além da nostalgia típica da exploração do passado, e mais do que a fabulação sobre o futuro – o filme brinca com situações, em um mesmo lugar, que aconteceriam em décadas ainda distantes –, pode-se dizer que a exploração desses escoamentos para além do quadro também estão aqui.
Nesse caso, se destaca especialmente o uso da geometria, que divide a tela em diferentes zonas a cada nova sobreposição, e que num campo didático sugerem esses complementos entre diversas linhas temporais. Ainda que essa leitura seja evidente, o filme é menos sobre esse paralelismo do que a respeito desses intervalos, dessas separações sugerindo tudo capaz de caber em uma mesma imagem.
Seja na representação de povos indígenas, como as passagens ambientadas em um Brasil pré-colonial, na reprodução dos desejos de um casal homossexual que busca o seu lar, ou simplesmente na forma como Novais investiga os corpos negros que passeiam por suas memórias, existe uma dualidade entre a concretude dessas digressões e a subjetividade da sua conexão. Talvez por essa razão o desfecho seja tão forte, trazendo a pintura em vermelho de uma parede que demora a se finalizar. Tem-se um filme sobre o poder dessa sugestão, da maleabilidade de uma forma para que diversos significados possam caber em um mesmo contorno.
Como um todo, os filmes de abertura brincam com a fluidez das imagens através do tempo, propondo diálogos com o espectador que modulam formas do cinema brasileiro contemporâneo e se filiam à impressões que permanecem no inconsciente muito tempo após a exibição.