Filme de Payal Kapadia conta de uma Índia fora do retrato orientalista, ultra colorido e focado na miséria, e tenta alcançar a audiência pela veia universalista da vida cosmopolita, que ganha individualidade por suas protagonistas, contexto cultural e localidade
Maria Eduarda dos Anjos
O primeiríssimo personagem ao qual a plateia é apresentada em Tudo Que Imaginamos Como Luz é Mumbai. Luzes fluorescentes e o vai-e-vem do povo fazem a noite parecer dia enquanto uma voz onisciente conta dos sonhos e as muitas promessas de uma vida melhor que dão alma àquela maré de gente. Do outro lado do mundo, é como se descrevessem São Paulo, Nova Iorque, ou Buenos Aires . É de se imaginar que alguém, na plateia de outro festival em uma outra cidade cosmopolita, também viu sua cidade em tela nos primeiros minutos da narrativa dirigida por Payal Kapadia.
Prabha é a enfermeira-chefe na cidade e está há mais de um ano sem falar com o marido, que foi para Alemanha trabalhar em uma fábrica. Ela divide apartamento com Anu, estudante interna do hospital que esconde um romance com um jovem muçulmano enquanto seus pais tentam arranjar o homem hindu perfeito para ela. Parvaty, amiga de Prabha há anos, entre milhares de papéis acumulados com os anos, não consegue achar nenhum documento que alegue que o terreno onde morou a vida toda é de fato de seu marido quando uma empreiteira ameaça tomá-lo.
Problemas materiais se misturam a conflitos pessoais conforme a cultura patriarcal da Índia ecoa na vida de três mulheres que batalham para se manter em uma das cidades mais populosas do mundo. Todas lidam com as consequências de estarem atreladas aos homens que escolhem como parceiros, um fator decisivo tanto nas miudezas da rotina quanto nos grandes acontecimentos da vida de cada uma, atravessando diferentes contextos e gerações. Anu, jovem e no começo de um romance, esconde da família e dribla a ciência da companheira de apartamento para continuar seu namoro com um homem de outra fé; Prabha, já casada, foi abandonada pelo marido que seus pais lhe arranjaram, e caminha na linha tênue entre a dor e o ressentimento por, mesmo depois ceder às normas sociais, não ganhar o matrimônio que a prometeram. Parvaty, aparentemente mais velha, se tornou viúva após 22 anos e tem que lidar com a possibilidade de demolirem a casa que morou a vida toda porque seu marido não se preocupou em como a esposa ficaria uma vez que não estivesse mais lá. Aparecendo pouco ou sequer tendo rosto, esses homens são o símbolo de uma cultura patriarcal indiana que consegue se infiltrar pelas beiradas em qualquer situação e delimitar de forma significativa a vida de uma mulher, seja pelo pai, namorado ou marido – estando ele vivo ou não.
É interessante como as crenças misóginas ainda mediam até mesmo a relação das três indianas entre si, especialmente por parte de Prabha. Apesar de gostar de Anu, a julga pelo seu relacionamento e, quando questionada se não achava estranho se casar com alguém que nem conhecia, retruca dizendo que é como as coisas sempre foram. Presa na ambivalência de estar casada sem um marido, ela nega uma maior proximidade com um dos médicos do hospital e se resigna a esperar um homem com quem só fala em sua mente. Os resquícios desse machismo internalizado são sintomáticos, mas ineficazes quando comparados à lealdade e ao acolhimento nutridos quando não podem contar com ninguém para apoiá-las além delas mesmas. É em um local ensolarado e calmo, diferente da Mumbai exibida durante todo o filme, que as protagonistas exploram seus desejos de forma catártica e solidificam essa confiança que, mesmo que insuficiente para ser revolucionária, amortece a vida em uma sociedade que lhes nega uma vida de autonomia.
Tudo Que Imaginamos Como Luz conta de uma Índia fora do retrato orientalista, ultra colorido e focado na miséria, e tenta alcançar a audiência pela veia universalista da vida cosmopolita, que ganha individualidade por suas protagonistas, contexto cultural e localidade.