Vitrais de um cinema novo

“Ninguém Derruba o Titã” (2023, dir. Bianca Ayuri e Pedro Jordaim)

Recém-nascido, foi bonito testemunhar o parto do Festival Mosaico, que surge com muita força para legitimar inúmeras narrativas, experiências e sensações de jovens amaldiçoados pela vontade incurável de navegar pelo cinema

Davi Krasilchik

A democratização cinematográfica está longe de se tornar realidade no país, tornando fundamental celebrar todas as incursões nele possíveis, especialmente as daqueles que estão se desafiando pela primeira vez. É fato que o subdesenvolvimento determinou atrasos em múltiplas esferas, mas se pudermos escolher outro caminho além do abismo, que seja reconhecendo a riqueza de visões que essa formação proporcionou. Para amplificar esse necessário reconhecimento, neste ano recebemos o Festival Mosaico, festival paulista de curta-metragens universitários idealizado por estudantes da Escola de Comunicação e Artes da USP e de outras instituições. 

Reconhecendo os trajetos obscuros que o Audiovisual Brasileiro atravessou nos últimos anos, a primeira edição do festival escolheu como palco a simbólica Cinemateca Brasileira. Vítima de um trágico incêndio, que em 2021 destruiu parte significativa de seu patrimônio cultural, o espaço vem injetando novos sopros para o nosso cinema desde a sua reabertura, aliando o esmero na preservação à programação de mostras e exibições, gratuitas, de obras dos mais variados países.

Não é por acaso que os que puderam testemunhar as exibições do Mosaico se depararam com saguões muito cheios, impulsionados pelo interesse em novas obras, de jovens brasileiros, e nas novas visões de Brasil sendo ali erguidas. Os dois dias de exibição receberam diversos rostos, vozes e histórias, vindas dos mais diversos bairros, da tela ou da plateia, de experiências íntimas, universais, de onde fossem, para alimentar ainda mais uma cultura até hoje resiliente em se desvencilhar das sombras.

Para aqueles que ali estiveram, sabemos que desde o primeiro curta não faltou magnetismo percorrendo a Grande Otelo. Era pulsante a atração pelos planos em trânsito na tela, originadas fosse pela necessidade de exorcizar algum espectro interno, de conscientizar a respeito de uma realidade revelada pelas lentes da câmera, ou simplesmente pelo ímpeto de articular sensações em imagem.

No sábado, dia 25, o estilo principal – ainda que fragmentado em diferentes possibilidades – se voltava aos documentários, decifrando variados exercícios de intercâmbio entre o real e o subjetivo. Da bela revelação de uma realidade escondida pelo adormecer da cidade, do premiado “Fui na Feira” (2023, dir. Ana Carolina Aliaga e Vitória Marques), ao jogo de olhares e perspectivas que atravessa a fantasia em “Ninguém Derruba o Titã” (2023, dir. Bianca Ayuri e Pedro Jordaim), – e que talvez suspenda a própria categoria, propondo uma mistura de estilos narrativos –, foi simbólico participar da legitimação das mais variadas linguagens.

No domingo, 26, foi a vez da ficção, associada a diversos gêneros. Do terror – caso do assustador “Farol Alto” (2023, dir. Bruno Bimbati), que flerta com as liberdades do absurdo – ao drama – conforme o instigante “Noite Calma” (2022, dir. Gustavo Oliveira) –, o dia serviu para relembrar das possibilidades supranaturais que esse fazer traz consigo, entendendo a realidade para trazer a ela uma ruptura. Autorizando até o instinto mais puro que nos leva a criar imagens – como a mera vontade de registrar as próprias proezas em uma pista de skate, como no elogiado “São Bernóia” (2023, dir. Luca Scupino), que levou o Prêmio do Júri –, nos induz transpondo em sua superfície uma diversidade de dúvidas, incógnitas que talvez jamais conseguiremos responder, a segunda data do Festival complementou o que já se apresentava como cerimônia de celebração.

Celebração dos incontáveis estudantes que puderam perceber que certas ideias não merecem ser jogadas fora. Da inspiradora Thayná Campos – diretora de “Cosmovisão”, curta que escuta a angústia de um grupo de alunas bolsistas dentro do espaço de uma faculdade privada –, cujas lágrimas de orgulho se misturam a tantas outras carimbadas em rostos jovens. O seu “eu sempre sonhei em ver meu nome subindo nos créditos” retumbou como o hino de uma nação pela Sala Grande Otelo, tão particular como universal. 

Recém-nascido, foi bonito testemunhar o parto do Festival Mosaico, que surge com muita força para legitimar inúmeras narrativas, experiências e sensações de jovens amaldiçoados pela vontade incurável de navegar pelo cinema. Maldição essa que é menos um peso que uma responsabilidade, de dar continuidade às raízes do subdesenvolvimento, sem que a vergonha e a vontade de ocultar essas particularidades tenha influência no processo. Que esse nascimento venha a estimular muitas outras iniciativas do tipo, engajadas a legitimar todos os que nasceram nas sombras, mas que reivindicam para si o direito de se expressar, incondicionalmente, através da luz.

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