Dedicados a dar luz a uma antiga lenda Mbyá-Guarani, Ariel E. Ortega e Ernesto de Carvalho questionam o próprio processo do registro técnico e histórico, revertendo a hegemonia de um olhar externo
Davi Krasilchik
A captura através da câmera pode ser entendida como ato de domesticação. Mediando a formulação de visões de mundo, não é incomum que a reprodução de imagens esteja vinculada aos grandes vencedores históricos, premeditando limitantes padrões na maneira de se reconhecer à vida. É no âmbito das urgências decoloniais que se organiza A Transformação de Canuto (2024), radicalizando a importância de se registrar uma cultura tradicionalmente usurpada, tomada à força por dominantes, pelo olhar dos próprios dominados.
Perseguido pela lendária história de Canuto, um indígena que, como punição divina, teria sido transformado em onça, Ariel E. Ortega – co-diretor do projeto ao lado de Ernesto de Carvalho – resolve adaptar a lenda para o cinema. Ele espalha a ideia por toda a sua aldeia, procurando atores para a representação que envolverá desde crianças até os mais velhos. Os bastidores do feito são igualmente documentados, mostrando a equipe e os seus equipamentos como uma forma de demonstrar o desencontro entre busca e resultado.
Ainda que essa escolha última esclareça a verdadeira natureza do projeto, é interessante testemunhar como os choques entre a ficção e a realidade manifestam-se do adensamento entre Ariel e o conto inspirador. No contexto filmado, reproduzir tal história é uma maneira de olhar para si e reafirmar a identidade Mbyá-Guarani. A transformação transmuta-se em emancipação — menos de uma personagem mitológica para consigo mesma, e mais de uma ferramenta de registro tecnicamente homogeneizada pelos colonizadores.
É neste âmbito que surge a magnética sequência em que Ortega seleciona o garoto que dará vida a Canuto em sua versão mais jovem. Seu ensaio consiste na interpretação de uma onça, repetida inúmeras vezes. Ele desconstrói o projeto milenar de objetificação do outro — aqui entendido como qualquer sujeito destoante dos pertencentes às grandes potências ocidentais — pelo domínio dos meninos pelo próprio corpo. Ritual esse que, por si só, dialoga simbolicamente com a apuração de uma natureza interna enjaulada durante séculos.
O longo e sério olhar fixo de Álvaro Benítez, escolhido dentre os meninos, denuncia toda uma historiografia do olhar como ferramenta de aprisionamento. O plano atenta, pensado em um tempo futuro, àqueles que o assistem, seja no alcance de membros da mesma aldeia, outras tribos indígenas, ou — e, provavelmente — no alcance de um público externo. Surge, na montagem, como resposta à desigualdade de registros pela manutenção de vozes hegemônicas, um retorno desse jogo de observação e análise do outro.
Esse tipo de observação, de certo cunho antropológico, propaga-se por demais passagens do filme, sempre retornando a uma mescla entre o manuseio da câmera e os ritos manuais e simbólicos. É o caso da cabana, inacabada, que acaba ganhando outro sentido dentro da narrativa ficcional. Mencionada nos minutos iniciais, por Ariel, como promessa falha de uma escola, ela torna-se a casa de Canuto e sua família. Sua incompletude metaforiza o progresso da história do objeto do filme sendo ali construída.
Ainda que Ariel também escolha um ator para o personagem título em sua vida adulta, é interessante testemunhar como o mesmo torna a assumir o papel. O sonho de representar a lenda se confunde com a sua própria realidade, forçando-o a um processo de compreensão interna que balança novamente a gênese dos registros históricos. Complexifica-se o processamento das experiências atravessadas por um protagonista, posição tradicionalmente afastada dos que aqui a ocupam pela manutenção de um maléfico jogo de forças e nações.
Desse modo, A Transformação de Canuto reivindica a câmera para um “Outro” historicamente excluído dos processos de representação. Ainda que, felizmente, esse registro esteja se popularizando em uma história mais recente, a obra se destaca pela maneira como intermedeia esse processo entre o olhar e o registro de uma cultura pela imanência de uma lenda indígena. Tem-se a emancipação de um olhar cada vez mais potente na desconstrução de campos de visão reconhecidos por perpetuar o aprisionamento.